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Domingo, 19 Março 2017 12:49 Última modificação em Terça, 21 Março 2017 15:42

Novos planos de saúde no mercado: acessíveis para quem?

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País: Brasil / Saúde / Fonte: EPSJV

Ministério da Saúde encaminha à ANS propostas de um Grupo de Trabalho sobre planos de saúde acessíveis. Conheça as sugestões e as críticas que elas já geraram.

O diagnóstico é incontestável: diante de uma crise econômica que gerou, até agora, 12 milhões de desempregados, o número de beneficiários de planos de saúde diminuiu - até porque, no Brasil, 80% desses contratos são empresariais ou coletivos, portanto dependentes do mercado de trabalho. Em um ano, quase 2 milhões de pessoas deixaram de ter seguro saúde. A conclusão imediata não poderia ser outra: de fato, essa conjuntura “dificulta” o “acesso da população à saúde suplementar”. Uma resposta para esse problema (e muitos outros) foi dada na Constituição brasileira, com a criação de um sistema de saúde público, gratuito e universal, que atende a todos, com ou sem emprego e renda, em todos os níveis de complexidade. Quase 30 anos depois, no entanto, o Ministério da Saúde parece estar apostando em outra solução: flexibilizar a regulação da saúde suplementar para colocar no mercado planos de saúde privados “acessíveis”, ou seja, com menor cobertura e preços mais baratos.

Depois de gerar muita polêmica, o que começou como uma ideia anunciada na imprensa pelo ministro da saúde Ricardo Barros se tornou proposta concreta e acaba de ser enviada pela Secretaria de Atenção à Saúde do ministério para apreciação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Aumento dos prazos de atendimento, maior liberdade para reajuste e garantia de que o beneficiário possa pagar até metade do valor dos procedimentos em planos com coparticipação são algumas das medidas sugeridas. “[Os efeitos da crise] não são justificativa para desregular [o mercado de saúde suplementar], são argumento para mostrar a inviabilidade econômica e assistencial dos planos no sistema de saúde brasileiro”, contesta Carlos Ocké-Reis, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres). E explica: “O argumento está colocado de cabeça para baixo. Como os planos são crísicos, quando há uma crise econômica, isso fica notório. É por isso que saúde não pode ser organizada de maneira capitalista. E é também por isso que plano de saúde não é uma alternativa, porque ele não entrega o que promete. Você faz um contrato hoje e, amanhã, em função de um ciclo econômico, perde seus direitos enquanto consumidor”.

Novos ‘produtos’ no mercado

Depois de fazer uma exposição de motivos e elencar princípios norteadores, o documento enviado pelo Ministério da Saúde à ANS apresenta três propostas concretas de novos ‘produtos’ a serem lançados no mercado de saúde suplementar. O primeiro é o “plano simplificado”, que exclui o acesso à internação, a terapias e exames de alta complexidade – como tomografia computadorizada e ressonância magnética -, e a atendimentos de urgência e emergência.

O segundo é o “plano ambulatorial + hospitalar”, que ofereceria cobertura de atenção primária, média e alta complexidade, mas com uma exigência: “Havendo indicação para atendimento hospitalar, o beneficiário poderá ser encaminhado para uma segunda avaliação médica que reafirme a necessidade para o encaminhamento do procedimento”. Além disso, o texto da proposta ressalta que “a cobertura do plano está adaptada à disponibilidade de infraestrutura no município e à capacidade operacional da rede particular”. Esta última exigência está relacionada a um trecho anterior do documento, que afirma ser “necessária a flexibilização do rol de procedimentos da ANS”.

Por fim, consta ainda a sugestão de um “plano em regime misto de pagamento”, que prevê a coparticipação, o que significa que, além da mensalidade, os usuários do plano devem pagar uma parte das consultas, exames, serviços hospitalares e até “medicina preventiva”. “Fica sob responsabilidade do beneficiário o pagamento do procedimento, de acordo com valores previstos em contrato”, diz o texto que, no tópico anterior, em que enumera princípios norteadores, propõe que essa coparticipação possa chegar “ao menos” a 50% do valor do procedimento.

Coparticipação e risco

Na avaliação de Ligia Bahia, médica e professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dos três ‘produtos’ novos sugeridos, este último, que supõe a coparticipação, é a grande novidade da proposta. Não que isso já não exista: segundo informações do site da ANS, 33% dos “produtos comercializados” no mercado de saúde suplementar têm coparticipação ou franquia. Não existem regras, no entanto, para regular e limitar essa prática. E é aí que entra esse novo documento, propondo que a coparticipação chegue (ou até ultrapasse) metade do valor dos procedimentos. De acordo com o texto, essa medida faria com que “o beneficiário participe mais ativamente das decisões que envolvem a sua saúde”. “Isso é ridículo, é mistificação pura”, contesta Carlos Ocké-Reis, explicando que o “poder de barganha” do usuário sobre a qualidade da atenção prestada pelos planos é “zero”.

Na verdade, a regulação dos planos de coparticipação já vinha sendo discutida pela ANS desde 2010. E, coincidência ou não, resultou num primeiro documento que se tornou público neste momento e será, inclusive, objeto de uma audiência pública no próximo dia 20 de março. Marluce Chrispim, da Associação dos Servidores e demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Assetans) destaca que o perfil da maioria das entidades que compuseram o Grupo de Trabalho da ANS para discutir a regulação da coparticipação também participaram do GT criado pelo Ministério da Saúde para elaborar a proposta dos planos “acessíveis”. “Eram as mesmas entidades que estavam no GT nomeado pelo Ministério da Saúde. E, na época, a Agência de pronto se manifestou dizendo que não tinha conhecimento dele”, comenta.

Para se ter uma ideia, entre as quase 100 entidades que elaboraram o documento da Agência, há nove conselhos ou sociedades profissionais, uma instituição de defesa do consumidor, uma universidade pública (UFMG), Ministério da Fazenda e Ministério Público do Rio de Janeiro; todas as outras são bancos, operadoras ou representantes das empresas de saúde privada. Mais restrito no número de integrantes, o GT criado para desenhar a proposta de planos de saúde populares foi muito criticado por contar, em portaria, apenas com a participação do Ministério, da ANS e de uma confederação que representa os interesses das empresas de saúde suplementar e previdência privada. O documento, no entanto, afirma que a proposta foi elaborada a partir do debate com "mais de 20 instituições vinculadasà Saúde Suplementar, aos Órgãos de Defesa do Consumidor e ao Ministério da Saúde". “As empresas pressionam, é o papel delas. O absurdo é que o Ministério da Saúde aceite essa pressão e transforme isso em política oficial sem nenhuma mediação, sem disfarce”, critica Ligia Bahia.

Não é de se estranhar, portanto, que as propostas dois dois GTs sejam parecidas: na primeira versão de normativa da ANS, o limite sugerido é de 40% de coparticipação do usuário do plano, enquanto o documento dos planos “acessíveis” fala em “pelo menos 50%”. Na avaliação de Marluce, “as coisas se embolaram”. “Na realidade, dentro de uma proposta do que seria um plano acessível também se trata de coparticipação. Qual foi o grande mote dessa discussão? O Ministério não tem dinheiro, não pode financiar, então precisamos buscar outras fontes. E aí se divide o financiamento com o usuário”, explica, completando: “Não é acessível porque repassa para o consumidor ou para o contratante a parcela de financiamento para que haja entrada de dinheiro”. Ligia concorda: “Como é que alguém vai copagar uma internação de dois dias no CTI [centro de tratamento intensivo]? Não vai poder pagar. Está-se dizendo que isso é proposta de plano [de saúde] quando, na realidade, essas pessoas vão ter que recorrer ao SUS. A rede pública será a rede do plano”, contesta Ligia. Carlos Ocké completa: “O risco financeiro do plano vai ficar cada vez mais com o usuário e não com a operadora”.

Marluce diz que a Assetans defende a criação de norma que defina de forma clara não apenas o teto da coparticipação como também os procedimentos para os quais ele é cabível. “Quando você coparticipa, teoricamente isso diminuiria o valor da sua mensalidade, mas isso tem que ser comprovado por cálculos atuariais. E é preciso definir onde isso cabe ou não. Por exemplo, vale para internação?”, explica, ressaltando a diferença entre se cobrar do usuário a participação numa consulta de R$ 100 e num serviço hospitalar que pode custar R$ 10 mil ou mais. Por isso, a Associação defende que a norma a ser editada pela ANS deve ser mais discutida, apresentar simulações e passar por consulta pública. Nesse sentido, diz, a proposta de plano “acessível” que acaba de ser apresentada vem apenas reforçar o argumento. “Já existe plano ambulatorial no mercado. O que é, então, de fato, esse plano acessível? Até agora a única coisa que ele traz é a intenção de dividir a conta com o consumidor, com o cidadão”, aponta Marluce.

Outros nortes

Embutidos nas três propostas de novos planos de saúde, o documento traz também outros princípios “norteadores” que, embora não sejam propriamente uma novidade, poderiam mudar o cenário de regulação da saúde suplementar no Brasil. E, embora se proponha a tornar os planos de saúde mais acessíveis “à população brasileira”, o texto traz um conjunto expressivo de demandas das empresas de planos privados. Uma delas é a diminuição do controle sobre os reajustes, que aparece na proposta como a permissão para que a operadora “recomponha” o aumento de custo a partir da análise das suas planilhas. Outra demanda das empresas que o documento contempla é a revisão dos prazos nos quais as operadoras têm que garantir o atendimento ao usuário. No caso de consultas, por exemplo, a proposta é de sete dias para algumas especialidades – pediatria, clínica médica, cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia – ampliando o tempo máximo de espera das outras para 30 dias. Na avaliação de Ligia Bahia, não há qualquer fundamentação científica nessa divisão. Exemplificando com o caso da cardiologia – que estaria incluída no prazo maior -, ela questiona: “Se você enfartou e foi internado, como você vai sair da internação sem um atendimento marcado imediatamente com um cardiologista?”.

O documento propõe ainda a obrigatoriedade de uma segunda opinião médica nos casos de maior complexidade. Ligia chama atenção para o fato de que não se fala em segunda ‘consulta’ médica, o que, na sua opinião, poderia até ser desejável, mas seria mais caro para as empresas de planos de saúde.  “Estão propondo que se regulamente o que já existe, que é o usuário ser barrado no pedido de autorização [para os procedimentos]”, diz, lembrando que hoje já funciona assim. “É para ter mais uma barreira de acesso”, aposta. Marluce concorda: “Já existe uma equipe de auditoria dentro das operadoras. Se houver questionamento técnico, é de médico para médico, respeitando as resoluções do Conselho Federal de Medicina. Então, o que seria uma segunda opinião médica? É uma forma de fazer o usuário passar por várias opiniões até desistir ou para depois de não sei quanto tempo ter o pedido liberado ou negado? E a gente sabe que o tempo é um fator que interfere na melhor recuperação do paciente em casos como de doenças crônicas. Num primeiro momento, olhando muito friamente, isso nos dá impressão de ser a criação de mais uma barreira de acesso”.

Da mesma forma, Ligia acredita que a proposta de que o acesso inicial se dê por meio de um “médico de família ou de atenção primária escolhido pelo beneficiário entre os designados pela operadora”, que se aplica mais diretamente ao plano “ambulatorial + hospitalar” é outra armadilha. “Não vai ter escolha nenhuma”, diz, apostando que provavelmente a intenção das empresas de planos de saúde é concentrar todos os atendimentos e especialidades em um único estabelecimento. “Tudo que acontecer na vida do usuário desse plano, ele vai ter que ir a essa clínica”, exemplifica.

Retrocesso

“Essa é uma tentativa de desregular a cobertura, a carência, o preço. É um germe, uma semente da desregulação desse mercado”. O alerta é de Carlos Ocké, que, embora identifique nessa iniciativa o esforço de criação de um nicho de mercado de planos teoricamente mais baratos, reconhece também que a aprovação de uma proposta como essa beneficia todo o mercado de plano de saúde ao diminuir a r

egulação. A presidente da Assetans acrescenta que o que essa proposta de plano de saúde “acessível” faz é “mexer nas regras da ANS retrocedendo”. “Estão propondo voltar ao que havia antes da criação da Agência, antes da lei 9656, quando havia contratos que diziam explicitamente, por exemplo, que não ofereceriam cobertura se a pessoa desenvolvesse câncer. Vão cobrir o quê? Só o que é mais barato. E aí o usuário se vira”, comenta.

Quem vai comprar?

Mas, sobretudo diante da crise, vai ter público consumidor para esse novo pacote de produtos? “Se não tivesse mercado, não estariam colocando isso na roda”, responde Carlos Ocké, que completa: “Só que no cálculo econômico desses caras, está prevista a falência do SUS”. Para o pesquisador do Ipea a proposta de planos de saúde acessíveis voltados para a população de menor renda precisa ser compreendida como “farol para a viabilidade” da Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos públicos pelos próximos 20 anos e que, segundo muitos analistas, vai diminuir substancialmente os recursos para o SUS. Mas o que isso tem a ver com planos de saúde privados? Para Carlos Ocké, a resposta é simples: a única forma de essas empresas de planos sobreviverem é com subsídios públicos. “Não tem como expandir mercado sem o Estado apoiar isso. Precisa de recurso público”, explica. E aposta: “Eu estou querendo sugerir que amanhã, junto com esses planos, pode vir uma proposta de subsídio no plano de saúde”. Ele reconhece, no entanto, que a parcela da população que seria visada por esses planos mais populares não se encaixa propriamente no perfil dos usuários que hoje descontam o gasto com plano de saúde do imposto de renda – uma das principais formas de subsídio público à saúde privada. E é aí que mora um perigo ainda maior: tanto Ocké quanto Ligia apostam que o próximo passo pode ser subsídio direto, como vouchers ou outros mecanismos que já existem, por exemplo, no modelo colombiano. E não só para o público dos planos mais baratos. “O SUS não está em crise? Como é que o Estado vai dar recurso para o setor privado? É mais equitativo e eficiente financiar o setor público”, lamenta o presidente da Abres.

E agora?

Ao divulgar no seu site o ofício encaminhado à ANS, o Ministério da Saúde informou que “não propôs e não opina sobre nenhuma das propostas elaboradas pelo Grupo de Trabalho para discutir e elaboração do projeto de Plano de Saúde Acessível”. “Jogaram a bomba no colo da ANS”, analisa Ligia Bahia. A Agência, por sua vez, afirma, em nota publicada no seu site, que só irá se manifestar sobre o documento após avaliar “técnica e juridicamente” a proposta e discuti-la com outras entidades da sociedade civil. “Tem que ter discussão, tem que ter interação, tem que discutir sob a ótica do setor, respeitando que este país tem um sistema único de saúde e respeitando o papel da Agência e seu parecer técnico”, defende a presidente da Assetans. Ligia acredita que o resultado dessa análise está em aberto: “Eu acho que o corpo técnico da ANS é contra essa proposta. Mas, evidentemente, a Agência está sob pressão”.

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