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Diário Liberdade
Domingo, 24 Abril 2016 01:34 Última modificação em Segunda, 25 Abril 2016 00:44

A experiência dos Comitês de Fábrica na Revolução Russa (II)

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/ Reportagens / Fonte: Passapalavra
[M. R. Jones] Os comitês de fábrica de Petrogrado enfrentavam o problema de manter a produção quando a economia estava se desintegrando: a sabotagem dos donos obrigava os trabalhadores a assumir o controle. 

Leia A experiência dos Comitês de Fábrica na Revolução Russa (I) aqui.

Os camponeses tomam a terra

Enquanto os operários e soldados emitiam demandas para que outros as cumprissem, e dando-se conta devagar de que só eles poderiam lograr seus objetivos, os camponeses estavam passando à ação direta. Os levantamentos camponeses e as ocupações de terras ocorriam por todas as partes. Os camponeses levavam a cabo sua própria reforma agrária e ignoravam o Governo Provisório que estava em contra da ocupação de terras. Formaram-se os comitês camponeses nos níveis da volost (vila), uezd (distrito) e guberniya (regional). As decisões tendiam a fluir de baixo para cima: os de baixo só obedeciam se estavam de acordo. As discussões no seio dos Social-revolucionários, o partido camponês, já não eram sobre as preocupações reais dos camponeses. O que lhes importava era que as decisões que eles mesmos estavam tomando e as regulações que eles mesmos estavam adotando na questão da terra deviam ser irreversíveis.

A imagem dos camponeses como uma massa de ignorantes antissocialistas, em um mar em que os operários da Rússia se afogariam, é bastante equivocada. Eles se puseram a manejar seus próprios assuntos com entusiasmo: o analfabetismo não foi nenhuma barreira para suas habilidades. Os 45 membros eleitos do Comitê Camponês do uezd (distrito) de Novochastky disseram que eles “organizariam a nova sociedade”. A Convenção Campesina de Penza em 15 de maio estava composta por camponeses analfabetos com um só mestre instruído para anotar suas resoluções. Eles pediam aos donos “que aplicassem suas decisões e livremente dessem sua propriedade ao comitê da terra (do volost) (vila) para evitar a ocupação ilegal por camponeses individuais” [15] A convenção estabeleceu um controle das rendas, organizou as quantidades de terra que cada pessoa ou unidade familiar poderia ter, supervisionaria as colheitas e se asseguraria da utilização eficaz da terra. A assembleia campesina de Samara mostrou a grande impaciência dos camponeses com os políticos sobre a questão da terra. Um camponês gritou a um menchevique “Nós sempre temos que esperar, vocês é um asno, não pense que somos idiotas”. Eles prestaram escassa consideração à “legalidade” de suas ações – “Esse novo monte de advogados”, disse um deles, “dizem que estão do nosso lado, mas nós sabemos que é diferente; eles nos traíram”. [16] O Decreto sobre a Terra de Lênin não fez mais que reconhecer um fato consumado: 65 de 70 sovietes campesinos já haviam dividido a terra.

Os camponeses foram rápidos em se livrar dos grilhões da religião. Um padre se queixava: “Meus paroquianos hoje em dia só vão às reuniões do soviete, e quando lhes recordo que devem ir à igreja me dizem que não têm tempo”. [17] Um camponês disse a um padre cara a cara o porquê: “Durante séculos uns poucos nobres e latifundiários mantinham milhões de pessoas pobres, sangrando e suando – e vocês padres diziam que isto estava bem, cantando em coro ‘Vida longa aos Czares e a nossos líderes’; e agora que o povo tem o poder e está tentando estabelecer a igualdade, você, o ‘Homem Santo’ não nos reconhece”. [18] Os operários sabiam da importância do campesinato para o êxito da revolução. A Conferência de Petrogrado de Comitês de Fábrica debateu a questão agrária com a intenção de aproximar relações com os camponeses. Os operários de Petrogrado criaram comissões especiais nas fábricas para reunir sucatas de metais e peças danificadas para um projeto chamado “do Operário ao Camponês”, para fabricar ferramentas agrícolas para os comitês campesinos. Enviaram delegados ao campo para negociar diretamente, de operário a camponês, sobre os envios de grãos. Não há razão para supor que os operários e os camponeses não haviam podido desenvolver uma relação eficaz: a autogestão trabalhadora não era uma ameaça para os camponeses.

As Jornadas de Julho

Junho viu greves entre a maioria dos operários explorados – tintureiros, balconistas, operários da lavanderia, os não qualificados. Uma combinação de inflação, lock-outs e frustração com o governo e os sovietes estava subindo a temperatura. Uma demonstração em 18 de junho viu um slogan chamativo em uma entrada de uma fábrica – “O direito à vida é mais importante que os direitos da Propriedade Privada”. Isto se destacava entre o pântano de slogans dos partidos, que diziam basicamente: “Abaixo o Governo”. Eram os operários os que viram o problema em seus termos mais fundamentais. Com a Putilov em greve, os experientes trabalhadores do metal estavam agora se unindo ao movimento. Os bolcheviques insistiram no apaziguamento. Lênin se mobilizou para dizer no “Pravda” de 21 de junho: “Nós entendemos vossa amargura, nós entendemos a excitação dos operários de Petersburgo, mas nós lhes dizemos: Camaradas, um ataque imediato seria inoportuno”. Muitos operários bolcheviques se queixavam disto, não lhes agradando ter que brincar de “mangueira de apagar fogo”. Em uma reunião da Putilov um bolchevique disse que os operários deviam esperar que o partido declarasse se uma manifestação era oportuna ou não, e conseguiu uma afiada resposta: “De novo você quer postergar as coisas. Nós já não podemos viver assim (…)” [19] Ponderando a atitude bolchevique, os operários tinham em mente que as greves de fevereiro haviam sido contra “as sugestões dos líderes”, e que essa ação desde baixo é que havia conquistado a jornada de oito horas.

Em início de julho, as fábricas saíram às ruas e os Guardas vermelhos estavam armados e prontos. Em 3 de julho, os bolcheviques fizeram tudo o que puderam para deter os regimentos de metralhadoras, e Tomsky se queixou em uma conferência bolchevique de que “os regimentos que saíram atuaram de uma maneira não camarada ao não ter convidado o Comitê Central de nosso partido para considerar a questão da manifestação”. Ele exortou a questão de um apelo a deter “as massas”. Lênin falou aos manifestantes na manhã do dia 4, enfatizando a necessidade de uma marcha pacífica, para assombro dos marinheiros armados que estavam buscando uma aprovação da ação. A marcha era puramente um assunto da classe trabalhadora, milhares de pessoas fluíam dos distritos pobres de Petrogrado, com a demanda “Todo o poder para os sovietes!” Mas o soviete não foi tão audaz: um trabalhador teve que gritar a Chernov, um dos líderes dos socialistas moderados do soviete – “Tome o poder, seu bastardo estúpido, ele está na sua frente em uma bandeja!”.

Em vez de tomar o poder, os líderes do soviete e seus aliados socialistas no Governo Provisório ordenaram às tropas leais que detivessem os defensores de tais ideias! Cerca de 400 trabalhadores e soldados morreram para permitir aos socialistas moderados aparecerem como respeitáveis para a burguesia. Como o partido ficou intacto por este e por outros sucessos similares, os bolcheviques atraíram o apoio dos trabalhadores. Havendo reduzido com êxito o movimento de julho a uma manifestação, os bolcheviques seguiram “organizando”. Na altura das Jornadas de Julho, Kamenev disse que “nossa tarefa presente é dar ao movimento um caráter organizado”. Ganhar votos e posições era o paralelo desta proposta. Quando os bolcheviques ganharam o controle da seção de trabalhadores do Soviete de Petrogrado, na análise de Trotsky isto era quase como lograr o próprio socialismo: “Dos lábios dos oradores bolcheviques os manifestantes ficaram informados da vitória recentemente conquistada na seção de trabalhadores, e tal feito lhes dava uma satisfação tão palpável como a que faria uma entrada na época do poder soviético”. [20]

Apesar de sua influência inibidora, os bolcheviques se encontraram sujeitos à repressão por obra dos socialistas, que censuraram suas publicações e prenderam os principais militantes do partido. Os socialistas moderados indubitavelmente acreditaram em sua propaganda, que eram “agitadores” que haviam provocado os problemas entre os trabalhadores. Seu fracasso em se responsabilizar das demandas das pessoas não se teve em conta. O tema da repressão foi adequadamente expresso pelo General Branco, Kornilov, ao final de julho: “necessitamos três exércitos – nas trincheiras, um nas fábricas ou a retaguarda, e outro nos caminhos de ferro para lhes conectar (…) todos devem ser tão disciplinados como os do frente”. Não muito tempo depois, Trotsky diria a mesma coisa.

Preparando o terreno para outubro

A repressão depois das abortadas jornadas de julho recaiu primeiramente nos trabalhadores, pois os capitalistas e os políticos burgueses demandavam o fim da “anarquia” nas fábricas. Houve ataques ao direito dos comitês de fábrica se reunirem em horas de trabalho; o Comitê dos Industriais Unidos propôs que os membros do comitê não recebessem pagamento pelo tempo gasto em reuniões do comitê; alguns patrões não pagaram aos trabalhadores as horas que estavam nas tarefas da milícia; alguns se recusaram a deixar que os comitês de fábrica se reunissem na empresa. As plantas fecharam definitivamente, em parte pela política deliberada dos donos, mas também pelo combustível e outras escassezes decorrentes da rede ferroviária do país ter chegado a um ponto limite. Foram dadas ordens de fechamento pelos patrões, usaram de lock-outs, e alguns patrões tentaram mover suas plantas e sua maquinaria para áreas menos radicais para começar de novo. A Associação de Manufatureiros de Petrogrado fez campanha para salários por peça e “tendas abertas”. Tudo isso era parte do intento de suprimir os comitês e o controle dos trabalhadores. O lema dos burgueses parecia ser: “Pode o país perecer se ele já não me pertence”.

Alguns sovietes locais se viram forçados a assumir o controle para organizar o suprimento das mercadorias e dos artigos de primeira necessidade, já que o comércio colapsou. Não encontravam nos socialistas no governo nem ajuda ou simpatia. Skobelev, o Ministro de Trabalho menchevique, que já havia soltado uma circular em agosto que dizia que qualquer reunião em horas de trabalho era ilegal, fez circular um aviso dos industriais dos Urais que condenava “qualquer interferência dos comitês de fábrica na direção de uma empresa (… )”. Frente aos ataques que lhes faziam, os trabalhadores notaram a ineficácia dos sovietes mais altos e as associações sindicais. Cada vez mais eles estavam tendo que olhar para si próprios.

A forma mais efetiva de fazer isso era através dos comitês de fábrica. Em agosto ocorreu a segunda conferência dos Comitês de Fábrica de Petrogrado e seus Arredores. Esta fez muito para regularizar a forma em que os comitês seriam organizados. A Assembleia Geral de todos os trabalhadores de uma fábrica seria o órgão mais alto e a coluna vertebral do movimento. Nela seria eleito o comitê da fábrica. Uma assembleia geral só poderia ser contestada ou anulada pelo Conselho Central de Comitês de Fábrica, um corpo construído junto a todas as fábricas. A assembleia geral tinha o direito de revogar e reeleger o comitê em qualquer momento. Para que um comitê de fábrica fosse válido, 50% da força de trabalho tinha que votar. Seriam formados subcomitês para os diferentes departamentos dentro de uma fábrica, ou para levar a cabo tarefas específicas. “A fábrica e comitês centrais não se criam por reuniões temporárias. As massas elegem para esses comitês aqueles que em casa e na vida diária da fábrica demostraram sua firmeza, seu carácter empreendedor e sua devoção para os interesses dos trabalhadores.” [21] Nesta conferência, foram os bolcheviques os que outra vez disseram que a tarefa dos comitês deveria ser a de supervisionar, e não iniciar as decisões; os anarquistas defenderam a ideia de autogestão. Os comitês de fábrica de Petrogrado enfrentavam o problema de manter a produção quando a economia estava se desintegrando: a sabotagem dos donos obrigava os trabalhadores a assumir o controle. Crescia a pressão para tomar as fábricas, para que as empresas fossem nacionalizadas e para o controle dos trabalhadores.

Durante agosto, os trabalhadores responderam eficazmente à ofensiva de julho dos dirigentes. Conforme a vanguarda dos trabalhadores de metal tomou uma atitude cautelosa, os novos extratos de trabalhadores retomaram a batalha. Houve uma greve de alguns dias em Moscou em 12 de agosto. Um observador comentava que “não havia bondes, nem luzes; as fábricas e as tendas de comércio estavam fechadas, assim como as linhas de trem e as estações; até os garçons dos restaurantes haviam se declarado em greve”. Cerca de 400.000 trabalhadores estavam parados. Outras cidades grandes como Kiev também tiveram greves. Em Moscou os trabalhadores do couro também defenderam os direitos de seus comitês de fábrica a contratar e demitir. Em alguns lugares os comitês se dedicaram a prender os gerentes. Ainda que tenha havido uma reanimação da atividade entre os sovietes de baixo para cima, o papel principal dos comitês ficou claro. Inclusive Lênin reconheceu isso, brevemente, em agosto: “Devemos nos girar até o centro de gravidade da fábrica e os comitês centrais. (Eles) devem se converter em órgãos da insurreição”. Esta explosão de entusiasmo com as organizações dos trabalhadores não durou muito. Em 31 de agosto, os bolcheviques ganharam a maioria no Soviete de Petrogrado, e cinco dias depois tomaram o Soviete de Moscou. Agora a chamada de Lênin e Trotsky era “Todo o poder para os sovietes bolcheviques!”.

Os bolcheviques estavam também ganhando poder sobre algumas associações sindicais, que sempre haviam se oposto aos comitês de fábrica. Os sindicatos centralizados queriam que os comitês supervisionassem os assuntos locais e nada mais; contrariamente a isto estava a rede autônoma de comitês que defendiam a direção coletiva da fábrica, da cidade e da nação. Mas os comitês estavam se organizando nacionalmente. Em 15 de outubro publicaram seu próprio diário Novy Put (“Novo Caminho”). De 17 a 22 de outubro mantiveram sua primeira Conferência Panrussa de Comitês de Fábrica com 137 representantes de 49 centros industriais, 66 dos delegados eram bolcheviques. A conferência votou instalar um Conselho Panrusso, e abordou os problemas do Conselho Central de Comitês de Fábrica. Como os comitês locais haviam mantido seus melhores ativistas, as vagas resultantes iam sendo preenchidas por representantes dos sovietes, sindicatos e partidos políticos. A conferência manifestou que “Os trabalhadores estão mais interessados que os donos na operação correta e ininterrupta das plantas”. O controle dos trabalhadores ia “no interesse do país inteiro e deve ser apoiado pelo campesinato e exército revolucionários”. O bolchevique Milyutin sustentou a opinião de que uma tomada de posse soviética era necessária para o controle dos trabalhadores. Seu camarada, Larin, abordou um tema que ia ser um dos favoritos de Lênin: “Alemanha estabeleceu um programa econômico nacional, mas foi concebido pelos interesses da classe dirigente: devemos fazer o mesmo, mas no interesse dos trabalhadores”. Um anarquista, Pistrkovsky, atacou os sindicatos: “Os sindicatos estão tentando nos estrangular (…) seus membros não estão realmente na fábrica (…) sempre estão prontos para compromissos (…) os comitês têm a chave para o futuro”.

Os sindicatos estavam controlados principalmente pelos mencheviques e contra a Revolução de Outubro. Os comitês de fábrica de outro lado chamavam os sovietes para que tomassem o poder. Durante outubro, o poder se aproximava cada vez mais das mãos dos trabalhadores, soldados e camponeses. Os trabalhadores das imprensas tomaram medidas para deter qualquer propaganda contrarrevolucionária; os empregados dos arsenais e de escritórios controlavam a repartição de armas e de munição; o comitê de fábrica da planta elétrica de Petrogrado se ligou com outros comitês de fábrica para conseguir carvão e gordura para as turbinas para responder à sabotagem dos patrões; uma conferência de operários da indústria de artilharia chamou por um governo soviético, e criou um grupo para estudar a transição para a produção pacífica.

Entretanto, Lênin escrevia na tarde de 24 de outubro – “Quem deve tomar o poder? Isso agora não tem importância. Deixemos o Comitê Revolucionário Militar tomá-lo ou “alguma outra instituição”, que entregará o poder só aos representantes genuínos dos interesses do povo”. [22] Não “ao povo”, nem sequer “aos representantes do povo”, mas “aos representantes dos interesses do povo”: Isto é, o Partido Bolchevique dirigido por Lênin. O programa de Lênin para a revolução adotava as demandas do movimento de massas – substituir o governo existente por um sistema soviético, acabar a guerra, dar a terra aos camponeses, estabelecer o controle dos trabalhadores – só para diluir as demandas e capturar firmemente o movimento. O controle operário, por exemplo, não devia ser nada mais que “uma nacional, ampla, onipresente, mais exata e mais consciente contabilidade da produção e distribuição dos bens,” e a maquinaria estatal existente se encarregaria disso. [23]

Os soldados, as Milícias e os Guardas Vermelhos

Quando os soldados ouviram as notícias da revolução de fevereiro todos os soldados disseram “Graças a Deus! Talvez agora tenhamos a Paz”, como informava um delegado de uma conferência de sovietes em março. Conforme a disciplina no exército se colapsava, cresciam as demandas de dignidade e respeito, de ser tratados como humanos e não ser insultados por seus oficiais e que não falassem com eles como se falava com animais ou crianças, de não ter que prestar continência, e para ter os mesmos direitos políticos e civis que qualquer indivíduo. Sobretudo, queriam o fim da guerra. Elegeram os comitês dos soldados que controlavam o armamento, e enviavam representantes aos sovietes. Um milhão de soldados simplesmente desertou do frente, voltou para suas casas e pegou seu pedaço das terras. Depois de abril, os soldados começaram a seguir os trabalhadores; alguns tomaram parte nas Jornadas de Julho. Depois disso, as autoridades tentaram restaurar a disciplina no exército. Depois disso, a desconfiança entre oficiais e soldados havia chegado longe demais. Como o futuro criador do Exército Vermelho – e futuro empregador de oficiais czaristas – notou: “Os trabalhadores de um lado, junto com as obscuras bases militantes, viam todo possível perigo precisamente nas tropas desses brilhantes oficiais”. Os comitês dos soldados começaram a pedir terra para os camponeses, a abolição da propriedade privada, a instalação de milícias de trabalhadores e o controle operário. A popularidade bolchevique aumentava entre eles porque os soldados pensavam que também queriam a paz.

Nos dias iniciais da revolução, em fevereiro e março, 30.000 revólveres e 40.000 fuzis desapareceram das reservas militares, e muitos foram parar nas mãos dos trabalhadores. As primeiras milícias operárias foram iniciadas pelos trabalhadores da impressão. Usualmente estabelecidas por trabalhadores sem partido em ação clandestina, eles estavam decididos a defender as fábricas. As Guardas Trabalhadoras nas plantas deram aos comitês de fábrica o poder de levar a cabo suas decisões apesar da relutância de patrões e gerentes. Os Guardas Vermelhos também atuaram para prevenir a sabotagem dos dirigentes e seus agentes. Quando, depois das Jornadas de Julho, se fizeram tentativas de desarmamento dos trabalhadores, estes entregaram armas inúteis e conservaram as armas importantes. Depois do golpe abortado de Kornilov, os trabalhadores conservaram seus fuzis constantemente a seu lado, no trabalho. As mulheres trabalhadoras estabeleceram divisões da Cruz Vermelha nas plantas e se fizeram discursos para o cuidado dos feridos. Os comitês de fábrica gradualmente enviaram materiais conjuntamente para os hospitais provisórios e as ambulâncias. Os comitês de fábrica de Veborg tinham seu comitê revolucionário no exército. Estas patrulhas do distrito tinham as chaves de todas as pontes levadiças e estudaram os pontos débeis na defesa dos distritos.

O armamento dos trabalhadores era demasiado extenso para que as autoridades pudessem fazer qualquer coisa a respeito. Quando houve a tentativa de golpe de Kornilov, tiveram que confiar nos trabalhadores. Os ferroviários quebraram os trilhos para deter os homens de Kornilov, e se armaram; os trabalhadores postais interromperam as comunicações; os sovietes nas grandes estacoes dirigiram a outras partes os trens e os regimentos. A pressão desde baixo reconstruiu os sovietes locais para enfrentar os reacionários. As milícias dos trabalhadores e Guardas Vermelhas estavam próximas dos comitês de fábrica e dos sovietes locais. O serviço nelas foi resolvido por sorteio, de modo que todos os trabalhadores passaram ao menos algum tempo atuando nelas. As fábricas trabalharam horas adicionais para produzir armas e munição. Enquanto os que tinham armas ensaiavam no manejo destas, os desarmados aprendiam outras habilidades militares úteis como a edificação de fortificações. Os 40.000 Guardas Vermelhos mantinham a ordem nos distritos da classe trabalhadora, detendo o roubo, protegendo os grevistas e manifestantes, apoiando e defendendo os comitês de fábrica inclusive fisicamente.

Outubro de 1917

A insurreição que deu o poder aos bolcheviques foi, estritamente falando, o trabalho do Comitê Revolucionário Militar do soviete de Petrogrado. Ainda que só pequenos números estivessem envolvidos ativamente no início, a falta total de oposição a eles, a ausência de apoio para o Governo Provisório significa que não podiam ser descritos como uma minoria. Rapidamente chegou o apoio para a ação logo depois do acontecimento do Soviete Sindical de Petrogrado e o Soviete Panrusso de Comitês de Fábrica entre outros. Os comitês de fábrica uniram forças aos bolcheviques, estes pareciam respaldar as aspirações dos trabalhadores. Os comitês haviam sido ativos nas Jornadas de Julho, haviam ajudado a organizar guardas armados, e estavam envolvidos no Comitê Revolucionário Militar. Skrypnik, um bolchevique no Conselho Central de Comitês de Fábrica havia dito ao Comitê Central do partido que os trabalhadores estavam prontos para uma revolução, e se não houvesse uma rapidamente os comitês se uniriam aos anarcosindicalistas. Motins de massas em Petrogrado pediam ao Segundo Congresso Panrusso de Deputados Operários e Soldados que formassem um governo. Esta era uma clara ratificação da tomada do poder. Se outubro foi “fácil” foi porque todo o trabalho já estava feito de antemão. O Governo Provisório estava completamente desacreditado e o aspecto reacionário do bolchevismo não havia sido revelado.

Apesar de uma massa de trabalhadores e soldados abarrotar o Congresso soviético em 25 de outubro, o Presidium foi eleito: 14 bolcheviques, 7 Social-Revolucionários, três Mencheviques e um Internacionalista. Os bolcheviques emplacaram como candidatos operários Lênin, Trotsky, Kamenev, Zinoviev, etc. Quando formou um governo, Kamenev leu uma proposta do Comitê Central Bolchevique para que um Soviete de Comissários do Povo, por meio do qual “o controle sobre as atividades do governo será concedido ao Congresso de Sovietes e sua Comissão Executiva Central”. Sete bolcheviques do comitê central do partido foram eleitos, e assim Lênin e Trotsky chegaram a se sentar na direção, sem haver feito nunca uma jornada de trabalho em suas vidas. “O governo dos trabalhadores” estava agora composto por revolucionários profissionais de classe média.

A liderança do partido bolchevique neste momento estava composta de militantes bem educados, geralmente em seus trinta e tantos anos. A maioria tinha alguns recursos pessoais, e assim nenhuma necessidade de trabalhar, já estavam mantidos por fundos da riqueza familiar ou do partido. Alguns tomavam trabalhos para “se meterem na indústria” (uma atualização da velha ideia Narodnik de ir ao povo: isto ainda é largamente copiado pelos bolcheviques de hoje). Em suas origens, os bolcheviques se estendiam desde aristocratas, como Chicherin, aos burocratas, como Lênin e Kollontai, passando por latifundiários burgueses (Smilga), comerciantes burgueses (Yoffe) até o grande burguês industrial (Pyatakov). Estes eram o tipo de gente que habitualmente comporiam a classe dominante.

Foi a Guarda Vermelha quem peremptoriamente fechou a absurda Assembleia Constituinte, o Parlamento de estilo Ocidental. Enquanto os membros da Assembleia e os socialistas (incluindo alguns bolcheviques) se escandalizaram, toda a população ficou completamente indiferente ao fim de outro “galinheiro”. O Guarda Vermelho Trifonov havia tentado converter a Guarda Vermelha em uma milícia sob o controle dos comitês de fábrica pela qual todos os trabalhadores passariam. Mas depois de outubro os bolcheviques não confiavam na Guarda Vermelha, já que era uma força armada independente do partido, e Lênin disse que “o lugar dos trabalhadores é a fábrica”. Os trabalhadores em geral usaram os slogans bolcheviques, excetuando a chamada para a nacionalização, pois os trabalhadores estavam pelo controle dos comitês de fábrica. Inclusive no momento da revolução, quando os bolcheviques estavam mais acima, existia em potência um conflito entre eles e os trabalhadores. Em algumas outras formas os trabalhadores chegaram mais longe que os bolcheviques. Foram os trabalhadores que insistiram no fechamento de todos os periódicos burgueses, e o trabalho obrigatório ou a expulsão para os burgueses. Mas o partido finalmente ganhou: em 1917 a constituição do novo Estado foi ratificada com as palavras “o partido dirige e domina o aparato inteiro do Estado”. Os trabalhadores, apesar de todos os seus esforços, permaneceram sendo trabalhadores.

O Manual Prático e o Contra Manual

Em seu panfleto “O Estado e a Revolução” escrito antes de outubro, mas não publicado até 1918, Lênin havia chamado a que “cada cozinheira governe”, para que os trabalhadores planejassem a sociedade socialista. Os ativistas militantes nos comitês de fábrica se deram conta da necessidade de coordenar suas atividades e centralizá-las. No próprio dia seguinte depois da revolução de outubro os representantes do Conselho Central de Comitês de Fábrica se reuniram com Lênin e alguns líderes dos sindicatos para propor um Conselho Econômico Provisório dos Povos de Toda a Rússia. Aqui havia um plane genuíno dos elementos da vanguarda real da classe trabalhadora. Sugeriram que este Conselho deveria estar composto por dois terços de seus membros, por representantes dos trabalhadores dos comitês de fábrica, sindicatos e do Comitê Executivo Central do Soviete, e outro terço dos proprietários e os técnicos. O Conselho teria divisões separadas correspondendo às diferentes partes da economia, cada divisão devia ser supervisionada por comissões de controle compostas somente por trabalhadores, estes formariam uma comissão de controle sobre o Conselho inteiro. O Conselho regularia a indústria, o transporte e a agricultura, e poderia tomar empresas privadas. Este intento construtivo para se enfrentar os problemas da economia, pensado pelos mais afetados, foi rejeitado de cara por Lênin, que tinha seu próprio “plano dos trabalhadores” na forma de um rascunho de decreto que aceitava as condições econômicas e as relações que os comitês de fábrica tratavam de superar. Seu decreto em vigor pretendia que os comitês estivessem subordinados aos sindicatos. Lênin também recusava deixar que os comitês recebessem empréstimos de dinheiro: o efeito disto se analisa mais adiante. No primeiro dia de domínio bolchevique, o próprio plano dos trabalhadores foi rechaçado.

Perseverante, o Conselho Central submeteu outro plano a juízo em 3 de novembro, desta vez para estabelecer um Conselho Panrusso para a Regulação da Indústria. Este plano se distinguia do anterior: excluía os sindicatos, cujos líderes haviam dado seu apoio a Lênin. Os líderes do Conselho Central viram que os sindicatos estavam demasiado distantes dos trabalhadores, eram incapazes de reagir frente aos intentos dos patrões de sabotar as fábricas. De modo semelhante, o plano agora deixava os patrões sem consideração e se tratava de assegurar que os comitês de fábrica não fossem integrados no Estado. O Conselho Central já se distanciava adequadamente das concepções de Lênin, e movia-se rapidamente à ideia de que os trabalhadores apenas precisavam por a indústria pra funcionar, as ideias de Lênin por outro lado eram: “fica suposto sem lugar a dúvidas que os patrões e o pessoal técnico continuarão manejando suas empresas sob o olho vigilante dos trabalhadores”. [24] Em finais de outubro um porta-voz bolchevique dos sindicatos, Lozovsky, disse “que é necessário deixar absolutamente claro que os trabalhadores de cada empresa não devem ter a impressão de que a empresa lhes pertence” [25]. Não obstante, para os trabalhadores, a revolução queria dizer que as forças produtivas do país eram agora suas.

O rascunho do decreto sobre o Controle Operário publicado em novembro estabelecia um Soviete Panrusso para o Controle Operário. Contudo, só teria cinco representantes dos comitês de fábrica, convertendo-os em uma pequena minoria. O controle operário seria implementado por corpos eleitos por comitês de fábrica ao lado da direção das empresas ou mediante assembleias gerais de todos os trabalhadores: estes corpos teriam acesso às contas da empresa e a outras informações (o que muitos comitês de fábrica já tinham), e suas decisões seriam obrigatórias (deliberativas). Havia, no entanto, dois “poréns” enormes nas propostas. Em primeiro lugar, os sindicatos poderiam decidir contrariamente a qualquer decisão do comitê de fábrica, e em segundo lugar, em qualquer empresa “importante para o Estado” os comitês seriam responsáveis por manter a ordem e fazer o que lhes mandassem. Estas duas coisas negavam qualquer aspecto positivo do decreto. Mais instruções detalhadas a suplementar o decreto foram formuladas por um pequeno comitê de três bolcheviques e dois social-revolucionários de esquerda: “As cozinheiras no governo”, com certeza! Eventualmente o novo governo produziu suas “Instruções Gerais para o Controle Operário”, a qual chegou a ser conhecida como o “Contra Manual”. Sua intenção global era converter os comitês de fábrica em braços locais dos sindicatos, sem nenhum poder. Seu ponto de vista fica nítido no Artigo 7: “(…) o direito de emitir ordens referentes à direção, gestão e funcionamento das empresas fica em mãos dos proprietários”.

O Conselho Central de Comitês de Fábrica distribuiu um “Manual Prático para a Implementação do Controle Operário” em fins de novembro de 1917. Este defendia que cada fábrica deveria ter comitês para organizar a produção, para manejar a conversão da produção de guerra à de paz, para obter suplementos de combustível e matérias primas, etc. Tais comitês muito provavelmente usariam o conhecimento e as habilidades de técnicos e especialistas, mas estes não teriam todo o poder de decisão; isto estava em marcante contraste com o esquema de Lênin. Os comitês de fábrica deveriam se unir: em federações locais, regionais e nacionais, criando assim um desafio direto ao Estado bolchevique. Então o Conselho Central confeccionou um Estatuto Modelo para os comitês de fábrica como resposta direta às instruções bolcheviques do “Contra Manual” e seu rascunho. Este concebia que os comitês seriam integrados em um sistema econômico de conselhos, com Conselhos Econômicos do Povo em cada distrito, cidade e região. Estes conselhos seriam eleitos nas conferências dos comitês de fábrica, e todos os seus membros teriam que pertencer a um comitê de fábrica.

Este plano foi completamente desenvolvido e aprovado em dezembro. Os conselhos locais uniriam os comitês de fábrica, os trabalhadores do transporte e os do comércio e agricultura. Os conselhos regionais elegeriam a cada ano um Conselho Econômico Supremo. Cada Conselho Econômico do Povo se ocuparia de toda a atividade econômica em sua localidade. Esta inundação de ideias e planos dos trabalhadores nas fábricas mostrava que os trabalhadores sabiam que o socialismo estaria vazio e sem sentido se fosse outra coisa diferente de sua atividade. Faziam uma tentativa concreta para afrontar os problemas enormes que a Rússia enfrentava; o mesmo que os bolcheviques, mas de um ponto de vista de classes diferente. Introduziu-se uma versão muito modificada dos Conselhos Econômicos de tal forma que debilitaria os comitês de fábrica gradualmente estabelecendo um controle centralizado de cima para baixo e estrangulando a iniciativa local.

A maior parte dos comitês de fábrica aprovaram as propostas do Conselho Central e rechaçaram as do Conselho Panrusso bolchevique de Controle Operário. Os comitês de fábrica na indústria de metal se queixaram de que o “Contra Manual” “amarrava as mãos dos trabalhadores enquanto que o Manual Prático deixava aos trabalhadores grande espaço para a ação independente e os tornavam os governantes práticos das fábricas“. [26] No período que segue à revolução de outubro, era necessário que a atividade dos comitês de fábrica aumentara grandemente para confrontar as táticas de sabotagem dos patrões, os lock-outs e sua recusa a pagar salários. Centenas de empresas foram ocupadas pelos trabalhadores que não tinham outra alternativa para proteger seu sustento. O governo bolchevique e os sindicatos estavam contra tais tomadas dos trabalhadores: incrivelmente, o Conselho Econômico Supremo ameaçou cortar os fundos para tais empresas. Muitos destes lugares de trabalho estavam sob a direção de juntas colegiadas de trabalhadores, técnicos e administradores, todos sob a supervisão do comitê de fábrica. Para meados de 1918, os comitês de fábrica estavam dentro das juntas administrativas de cerca de três quintos de todas as plantas, e em áreas como os Urais e a bacia do Donetz eram ainda maiores.

Os comitês enfrentavam dificuldades enormes em um período de colapso econômico que não foi provocado pelos trabalhadores. Os comitês fizeram um grande número de esforços construtivos para vencer o caos. O Conselho Central dos comitês de Petrogrado coordenou o trabalho para organizar a repartição de medicamentos, tecidos, combustível de maquinaria, etc. para as províncias e Finlândia. Pouco antes da revolução de outubro, a primeira Conferência Panrussa de Comitês de Fábrica havia requerido um plano para mudar a produção de tempo de guerra e adequá-la aos propósitos da indústria de tempo de paz: o Conselho Central estabeleceu comissões para a desmobilização. Politicamente, os comitês estavam clarificando suas atitudes. Um trabalhador bolchevique, Matvei Zhivkov, que foi presidente do comitê de fábrica na central elétrica em 1886 em Petrogrado, disse: “(…) isso é onde estamos, nos comitês da fábrica, onde as instruções são elaboradas e surgem desde baixo para envolver todos os ramos da indústria; são as instruções do lugar de trabalho, da vida, e por isso são as únicas instruções que podem ter algum valor. Mostram do que os comitês de fábrica são capazes e, por conseguinte, que eles deveriam dominar tudo o que concerne ao controle dos trabalhadores”. [27]

(continua…)

Notas

[15] citado por Ferro (Outubro), p.118.
[16] citado por Ferro (Outubro), p.120.
[17] citado por Ferro (Outubro), p.62.
[18] citado por Ferro (Outubro), p.65.
[19] citado por Trotsky, p.528.
[20] Trotsky, p.528.
[21] Trotsky, p.799.
[22] citado por Trotsky, p.1132.
[23] Ver Carr, p.71-2.
[24] Carr, p.73.
[25] citado por Carr, p.74.
[26] citado por Sirianni, p.101.
[27] citado por Sirianni, p. 99-100.

O texto A experiência dos Comitês de Fábrica na Revolução Russa será publicado em três partes.
O Panfleto pode ser lido em inglês aqui.

Tradução de Pablo Polese.

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