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Diário Liberdade
Terça, 04 Abril 2017 16:14 Última modificação em Quinta, 06 Abril 2017 19:37

Guterres ajoelhado: EUA e Israel apagam denúncia de apartheid

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País: Palestina / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Jornal Mudar de Vida

[Manuel Raposo] Durou menos do que seria de esperar a anunciada “nova era” da ONU, com o recém-eleito secretário-geral António Guterres à frente.

Dois meses depois de ter tomado posse, Guterres viu-se confrontado com um relatório publicado sob responsabilidade da Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental, um organismo da ONU liderado pela jordana Rima Khalaf, de que fazem parte 18 países árabes, que acusava Israel de praticar apartheid contra a população palestina. “Israel estabeleceu um regime de ‘apartheid’ que domina o povo palestino como um todo”, dizia o texto.

Cedendo, sem apelo e sem resistência, às pressões dos EUA e de Israel — que não se fizeram esperar — Guterres mandou retirar o relatório do site da ONU. Recusando-se a aceitar a decisão, Rima Khalaf demitiu-se em protesto.

Chegou assim ao fim a tão cantada “independência” do secretário-geral. E chega também ao fim toda a conversa que, durante meses de campanha eleitoral, quis fazer crer que, agora sim, a ONU passava a ser a expressão da vontade dos seus membros, sem discriminações, sem golpes de bastidores — a pura tradução dos preceitos inscritos na sua Carta.

Só quem não tenha acompanhado a prática da organização — dominada pelos interesses das forças imperialistas, ou posta à margem quando é caso disso — se podia iludir com as garantias dadas por Guterres e pelo coro de apoio que por cá lhe promoveu a eleição.

Bastava aliás ter presente o que escreveu Freitas do Amaral em 2003 (*), quando se adivinhava a invasão do Iraque. Freitas foi presidente da Assembleia Geral da ONU (1995-96) e teve nessa ocasião oportunidade de ver por dentro como as coisas realmente funcionam. Denuncia ele a dado passo a “enorme arrogância e prepotência dos políticos e diplomatas americanos, sobretudo para com os países mais pequenos e mais pobres”. Aponta Madeleine Albright (então embaixadora dos EUA junto da ONU) como uma pessoa “particularmente odiada”. E testemunha: “Eu próprio ouvi [a dita Albright] defender (num almoço de trabalho em sua casa) que, em sua opinião, o Direito Internacional não existe: o que existe são arranjos políticos entre as grandes potências, feitos e desfeitos conforme as circunstâncias de cada momento”.

O “arranjo político” e a “prepotência”, no caso presente, deram para fazer Guterres dobrar a cerviz. Israel é intocável, os palestinos que se aguentem. Tudo normal, portanto.

O Comité de Solidariedade com a Palestina e o MPPM tomaram posição contra a decisão do secretário-geral da ONU, lembrando e defendendo os direitos do povo da Palestina. O CSP divulgou a carta de demissão de Rima Khalaf, que é instrutiva acerca dos jogos de poder que se travam na ONU, quase sempre fora das vistas do público. Aqui a reproduzimos.

“É normal que os criminosos pressionem e ataquem aqueles que defendem as suas vítimas”

Caro Senhor Secretário Geral,

Considerei com atenção a sua mensagem transmitida pelo Chefe de gabinete e asseguro-lhe que em nenhum momento pus em questão o seu direito de retirar a publicação do relatório do nosso site internet ou o facto de que todos nós que trabalhamos para o secretariado estejamos submetidos à autoridade do secretário-geral. Assim como não tenho nenhuma dúvida com respeito ao seu empenho perante os direitos humanos em geral, e a sua posição firme relativa aos direitos do povo palestino. Também compreendo as suas preocupações, em particular nestes tempos difíceis que lhe deixam pouca escolha.

Não sou insensível aos ataques viciosos e às ameaças que pesam sobre as Nações Unidas e sobre si pessoalmente por parte de importantes Estados-membros como resposta à publicação do relatório da CESAO intitulado “As práticas de Israel para com os palestinos e a questão do apartheid”. Não me parece surpreendente que tais Estados-membros, actualmente com governos que se preocupam pouco com as normas e os valores internacionais relativos aos direitos humanos, recorram à intimidação quando lhes parece difícil defender as suas políticas e práticas ilícitas. É normal que os criminosos pressionem e ataquem aqueles que defendem as suas vítimas. Eu não posso submeter-me a uma tal pressão.

Não é em virtude do meu estatuto de representante internacional, mas em virtude do meu estatuto de ser humano honesto, que acredito, como o senhor, nos valores e princípios universais que sempre foram as linhas de conduta do bem na história humana, e sobre os quais uma organização como a nossa, as Nações Unidas, é fundada. Como o senhor, considero que a discriminação contra qualquer pessoa por motivos da sua religião, da cor da sua pele, do seu sexo ou da sua origem étnica é inaceitável, e que tais discriminações não podem tornar-se aceitáveis por via dos cálculos do oportunismo ou do poder político. Considero ainda que os povos não só deveriam ter o direito de dizer a verdade ao poder, mas que eles têm o dever de o fazer.

No espaço de dois meses, o senhor pediu-me que retirasse dois relatórios produzidos pela CESAO, não por causa de erros que tivessem sido cometidos nesses relatórios, e provavelmente não porque o senhor estivesse em desacordo com o seu conteúdo, mais por causa da pressão política exercida pelos Estados-membros que violam gravemente o direito dos povos da região.

O senhor viu que os povos dessa região vivem um período de sofrimento nunca visto na história moderna, e que o número considerável de catástrofes hoje resulta do fluxo de injustiças que foram ignoradas, escondidas ou abertamente aprovadas por governos poderosos dentro e fora da região. Esses mesmos governos são os que estão a pressioná-lo para fazer calar a voz da verdade e o apelo à justiça apresentados nesses relatórios.

Considerando o que precede, eu não posso senão manter as conclusões do relatório da CESAO, segundo as quais o Estado de Israel estabeleceu um regime de apartheid que procura o domínio de um grupo racial sobre outro. As provas trazidas neste relatório redigido por peritos de renome são numerosas. Todos os que atacaram esse relatório não disseram uma palavra sobre o seu conteúdo. Considero como um dever meu, em vez de eliminar as provas, divulgar o facto legalmente e moralmente indefensável de que no século XXI ainda existe um Estado de apartheid. Ao dizer isto, não estou a afirmar nenhuma superioridade moral ou visão superior. A minha posição é influenciada por uma vida de experiências onde vi as consequências desastrosas para a paz quando se bloqueia as queixas dos povos da nossa região.

Percebo que tenho pouca escolha. Não posso agora retirar mais outro dossiê das Nações Unidas bem documentado e resultado de investigações aprofundadas sobre graves violações dos direitos humanos, embora saiba que instruções claras do secretário-geral devam ser aplicadas rapidamente. É um dilema que só posso resolver pela minha demissão para permitir que outra pessoa faça aquilo que eu não posso fazer em boa consciência. Sei que já só tenho duas semanas no meu posto; a minha demissão não se destina portanto a exercer qualquer pressão política. É simplesmente porque penso que é meu dever para com os povos que servimos, para com as Nações Unidas e para comigo mesma, não retirar um testemunho honesto sobre um crime em curso que está na origem de tanto sofrimento humano. Por consequência, venho entregar-lhe a minha demissão das Nações Unidas.

Respeitosamente,

Rima Khalaf

(*) “Do 11 de Setembro à crise do Iraque”, Bertrand Editora, 2003

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