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Diário Liberdade
Segunda, 17 Abril 2017 00:00 Última modificação em Terça, 02 Mai 2017 17:10

A crítica marxista do direito: entre Pachukanis e Edelman Destaque

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País: Brasil / Reportagens, Batalha de ideias / Fonte: Diário Liberdade

Teoria geral do direito e marxismo (1924), de Evguiéni B. Pachukanis, e A legalização da classe operária (1978), de Bernard Edelman foram republicados no Brasil pela Boitempo. Ambas obras refletem a relação entre o marxismo e o direito. Para comentar sobre as teorias dos dois autores e a atualidade das mesmas, entrevistamos Pedro Davoglio, doutorando em direito na USP.

Diário Liberdade - As recentes edições e traduções de Edelman e Pachukanis aqui no Brasil, ao mesmo tempo que são frutos de estudos já consolidados sobre o marxismo e o direito, tem se desdobrado em eventos e novos interessados no meio jurídico mais crítico. Como você avalia a importância e a recepção desses autores hoje?

Pedro Davoglio - Nós vivemos em um contexto de crise ideológica. Desde a década passada a racionalidade dominante tem derretido de maneira consistente e perene. As promessas de que, com o fim da guerra fria, emergiria um sistema de nações democrático-liberal pacificado e de inclusão econômica e social progressiva, para lá de gerarem desconfiança, já aparecem mais como piadas de mal gosto. Esse recuo ideológico abre espaço para novas visões sobre a realidade. E o que se tem observado é que nesse contexto o marxismo tem recobrado prestígio, tanto no Brasil quanto fora. Isso ocorre, a meu ver, dentre outras, por duas razões principais: uma subjetiva e outra objetiva. Do ponto de vista subjetivo, pelo que tu disse acima, porque já havia estudos consolidados. Desde as décadas de 1970-80 é possível verificar uma renovação muito fecunda desse campo, com um resgate muito relevante do trabalho do Pachukanis, inclusive, naquilo que a gente poderia chamar de maneira genérica de uma “Nova Leitura de Marx”. Então o marxismo hoje consegue oferecer explicações extremamente complexas e sofisticadas para as transformações pelas quais o mundo passou e passa, que em nada lembram aquelas caricaturas exportadas pelos governos do Leste. Isso é um fator decisivo. Aparece em dezenas e dezenas de livros. E isto precisa ser dito: o Pachukanis é um autor fundamental dessa renovação. Para além de ser o autor mais importante da crítica do direito, ele é um autor que, do ponto de vista metodológico, foi pioneiro de um tipo de leitura do Marx que se atenta para a especificidade histórica das categorias analíticas, que pensa no encadeamento lógico dos conceitos do ponto de vista da construção sistemática e do automovimento do seu objeto. Já do ponto de vista objetivo, é perceptível que a derrocada do consenso liberal inaugurou uma era de radicalismos, que tem se mostrado dramática até aqui. Isso é até meio tautológico. O que eu estou chamando de radicalismo é justamente o corolário dessa situação de declínio do liberalismo: a ascensão de ideais políticos que não consideram que a democracia liberal seja a única ou mesmo a melhor forma de governo possível. Essa ascensão se locupleta dessa desmoralização do discurso da conjuntura anterior, e também acelera a sua degradação, produzindo efeitos imprevisíveis e nos pondo diante de alguns monstros terríveis. Pode-se dizer, então, que a história volta a estar em jogo, que é preciso se posicionar de maneira diferente diante dessa aceleração do tempo, e que o imaginário do qual se dispunha até então não parece fornecer os instrumentos necessários para essa reorientação.

Diário Liberdade - Para os mais leigos no assunto: a crítica marxista do direito é antiga? Quais suas características e principais vertentes? Onde Edelman e Pachukanis se inserem?

Pedro Davoglio - A crítica marxista do direito surge simultaneamente à crítica marxista em sentido lato. E isso independentemente do marco que a gente escolha para estabelecer esse início. Marx frequentou a faculdade de direito. Seus primeiros textos de juventude publicados na Gazeta Renana, alguns dos quais, inclusive, acabam de ser lançados no Brasil, tratavam de questões jurídicas. Em seguida, a sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e uma introdução a ela publicada nos Anais Franco-Alemães. Nesse sentido se pode dizer que a formação do pensamento de Marx passou em alguma medida por um acerto de contas com a ideologia jurídica. E as referências ao direito não param mais de aparecer, em fórmulas célebres como “o direito não tem história”, em A ideologia alemã, no 18 de Brumário ou em várias passagens de O capital, que é de onde Pachukanis extrai alguns dos principais insights para a sua teoria.

Mas é, a meu ver, no contexto imediatamente subsequente à Revolução de 1917 que a crítica marxista do direito ganha os seus principais contornos, e adquire as características que ela preserva até hoje. É sempre um exercício complexo esse de encaixar uma multiplicidade de autores e ideias em “correntes” de pensamento, mas eu diria que existem duas abordagens principais hoje dominantes na crítica marxista do direito: uma que tem como núcleo a dimensão instrumental, de dominação de classe instrumentalizada pelas normas e instituições jurídicas, e outra que enfatiza mais a dimensão relacional, de uma dominação abstrata e impessoal expressa na forma específica assumida pelo direito, pelas relações jurídicas, no capitalismo. A primeira análise poderia ser exemplificada pelo trabalho de Stuchka, que tende a priorizar os momentos normativo e decisório na sua definição de direito e que, por isso está propenso a identificar o direito com a vontade da classe dominante. O segundo enfoque está presente em autores como Pachukanis e Edelman, que se preocupam mais em compreender de que maneira as relações jurídicas são solidárias da própria definição de capitalismo, enfatizando o caráter historicamente específico do direito e correlacionando a forma jurídica com outras categorias de base da crítica da economia política, e o seu papel de constituição – e não de mera manutenção ou legitimação – da assimetria de classes.

Diário Liberdade - Na atual crise brasileira, o judiciário e a forma jurídica parecem estar no centro da cena política burguesa, inclusive com apelo e apoio popular. Como tais marxistas podem ajudar a entender essa situação?

Pedro Davoglio - Estou muito convicto de que o poder judiciário é hoje, se não o maior, um dos maiores inimigos do povo brasileiro. De um lado, nas salas de audiência dos fóruns, estamos produzindo uma das maiores populações carcerárias da história da humanidade, enjaulando centenas de milhares de jovens pobres por razões banais, por causa de venda de pequenas quantidades de drogas, por causa de furto de celular, de carne, de margarina, de detergente. E quando a mãe da pessoa vai lá visitá-la, fazem ela ficar pelada, de cócoras em cima de um espelho, metem uma lanterna na vagina dela... Fora os casos de tortura... Bem, não preciso continuar. As instituições jurídicas criam, regulamentam ou, quando muito, são coniventes com tudo isso. De outro lado, na cúpula dos órgãos juridiciários, pessoas que não receberam um voto, que não foram autorizadas por ninguém a exercer função executiva ou legislativa, se põem a participar de assuntos de governo, a legislar, se imiscuir em questões totalmente alheias às suas competências, em movimentos que evidentemente atentam contra os interesses do país. Isso me parece muito evidente! Não conheço precedente de país que tenha aniquilado setores inteiros, setores estratégicos, da sua economia a pretexto de combater a corrupção.

Tudo isso só pode ser entendido adequadamente a partir de uma perspectiva de totalidade. Em primeiro lugar, das contradições entre imperialismo, estratégias geopolíticas do centro, e as economias periféricas. Em segundo lugar, esse redimensionamento das funções no interior do aparelho de Estado, as trocas de funções, a guerra burocrática interna, todos esses aspectos e inúmeros outros só podem ser compreendidos a contento a partir de uma teoria relacional do Estado. A teoria da derivação do Estado, que é um dos principais instrumentos de análise das mutações do Estado contemporâneo, descende diretamente de Pachukanis, de um resgate contemporâneo de Pachukanis feito sobretudo na Alemanha e na Inglaterra, que tem penetrado com solidez no Brasil. Em terceiro lugar, um fenômeno que foi objeto frequente de estudo do Edelman, que é a neutralização da política pelo direito, e sua contraface, a politização dos aparatos jurídicos. A tentativa de restringir todas as funções de Estado a funções previstas em lei, reduzir política a administração, a políticas públicas, criminalizando qualquer movimentação que não seja estrito cumprimento de previsões positivas. Enquanto determinados ramos do aparelho estatal agem totalmente à margem de qualquer regulamentação jurídica, como no caso de corporações que lançam mão sistematicamente da tortura. O livro do Pachukanis parte das categorias jurídicas mais abstratas e as desdobra em direção a formações/conceitos mais concretos. Nesse movimento, ele analisa de que maneira a ratio jurídica, a racionalidade do direito, vai se imbricando com outras racionalidades, e como em alguns pontos aquilo que nós chamamos de aplicação do direito é, de fato, pura política. Nesse sentido, é possível estabelecer uma percepção mais realista não só das práticas para além dos regulamentos escritos, do que o direito diz sobre si mesmo, mas do modo específico de interação entre práticas acordes ou não com o direito sem cair em fórmulas como existência-validade-eficácia da norma. De por qual razão cada poder do Estado não age nos limites das competências que a lei lhe estabelece, etc.

Diário Liberdade - Os movimentos sindicais e populares, diante de um momento de retirada de conquistas históricas e grande ofensiva do capital, tem reagido com palavras de ordem como "nenhum direito a menos". A luta do proletariado, no fundo, é uma luta por direitos? Edelman e Pachukanis contribuem para uma autocrítica da militância?

Pedro Davoglio - Existe no pensamento progressista um modelo muito difundido de compreensão da sociedade que se baseia em um modo específico de interação entre dois termos: de um lado, existe a sociedade civil, o reino do mercado, dos interesses individuais, das paixões egoístas; de outro, o Estado, a esfera do interesse público, ou da imposição coercitiva de interesses da classe dominante. Muito grosseiramente, segundo esse esquema, a dinâmica social seria a de uma batalha entre os interesses privados, sediados no mercado, e o interesse público ou das classes trabalhadoras, sediados no Estado. De um lado, temos então, a economia capitalista, uma besta que funciona regularmente roubando dos pobres para dar aos ricos. E de outro, o Estado que, para consumar sua vocação emancipatória, deve domar essa fera, redistribuindo os resultados da produção através de direitos sociais (aposentadoria, renda mínima, seguro desemprego, saúde e educação públicas) e garantindo que essa distribuição possa se intensificar progressivamente pela luta dos trabalhadores através da garantia de direitos civis (liberdade de ir e vir, livre manifestação de pensamento, devido processo legal) e direitos políticos (livre organização partidária, direito de votar e ser votado).

No entanto, o que autores como Pachukanis e Edelman nos mostraram é que o direito entendido como uma relação social específica, longe de ser um instrumento hábil a frear, dominar ou mesmo extinguir o capitalismo e as suas injustiças, é um dos seus fundamentos imprescindíveis, uma de suas condições sine qua non de existência. Isso porque como que sob a ponta superficial de um iceberg, o núcleo de todo o edifício jurídico é a subjetividade jurídica, a capacidade que cada indivíduo da sociedade capitalista tem de livremente comprar e vender mercadorias, inclusive sua capacidade de trabalho, em condições de igualdade contratual. Nesse sentido, o direito é uma função do movimento antissocial do valor, com suas crises, depressões, guerras. É uma das formas responsáveis por completar a cadeia de equivalência que faz com que a grande maioria da humanidade trabalhe produzindo uma quantidade absurda de bens materiais aos quais jamais terá acesso. Nesse sentido, os direitos sociais entregam com uma mão as migalhas daquilo que o direito, como forma específica de regulação social da interação entre indivíduos isolados, tomou com a outra. Isso até que, à primeira crise, o governo da vez, seja de direita ou extrema esquerda, se veja obrigado a cortá-los por falta de orçamento. Ou você tem o Jango...

Sei que isso pode parecer um tanto abrupto para pessoas que tiveram pouco ou nenhum contato com a reflexão de autores como Pachukanis. Mas o grande potencial do seu pensamento está no fato de que nos faz ver que o direito é uma forma historicamente específica de regulação social, uma forma particular e limitada de exercício de liberdade, um horizonte histórico finito e solidário com as injustiças que promete discursivamente combater.

Agora, do ponto de vista da luta concreta, eu entendo que isso não significa a interdição da tática jurídica, de luta por direitos, de litigância estratégica, de reformas em qualquer hipótese. A meu ver todas essas táticas podem ter uma importância relativa no interior de programas estratégicos, e essa importância deve aumentar ou diminuir a depender de cada conjuntura. Me pareceria delirante, por exemplo, defender que advogados não usem todos os instrumentos jurídicos possíveis para libertar presos políticos, para falar sobre uma coisa que é do nosso dia-a-dia. O que o pensamento de Pachukanis combate, e nesse ponto talvez o de Edelman ganhe um destaque particular, é que a luta por direitos se converta em horizonte estratégico absoluto dos movimentos sociais de pretensão emancipatória, porque isso significaria a sua aniquilação total. A mensagem que eles nos enviam é muito enfática: a luta por direitos é uma luta no interior da forma de vida capitalista, que não tem, por si, o potencial de superá-la. E, capitalismo, enquanto sociedade na qual todos os interesses são ponderados no plano individual e todas as necessidades só podem ser satisfeitas por meio da compra e venda de mercadorias cujo preço é controlado em função da sua escassez, é, por isso mesmo, sinônimo de crise, de desigualdade, de exclusão. O que esses autores mostram é que o direito não será capaz de superar essas mazelas.

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