A Rússia e os Estados Unidos têm muitos interesses divergentes e a maioria deles resultam em conflitos. E é sobre esse eixo de oposição que se constrói uma narrativa de confronto entre valores e por isso, a sensação de que há uma bipolaridade semelhante à Guerra Fria. Apesar dessa afirmação carregar alguma parcela de verdade, as análises a respeito do cenário político internacional, embaralharam as cartas em campo e nos esquecemos de um mundo que tende hoje para um cenário multipolar – algo que os defensores das acomodações nem sempre reconhecem com franqueza.
No caso russo, sua reemergência como polo de poder não está apenas associada ao orgulho perdido pelo país nos anos 90, oferecido à Rússia pelo Ocidente, sob alegação de que, o país não tinha qualificações necessárias para uma arquitetura global com a presença dela nas esferas de decisões; devido à sua lentidão nas transições econômicas e democráticas. Na prática e nos bastidores do poder, a Rússia recusaria a condição prévia máxima para viabilizar sua integração ocidental: a aceitação da liderança norte-americana, exigindo um status efetivamente co-igual com os Estados Unidos que sempre lidou com essa questão de modo hostil, através da OTAN, principalmente a partir de meados da década de 90 que, ao lado da União Europeia, começaram a expandir-se para o leste, procurando consolidar os ganhos econômicos e políticos que o colapso soviético prometia, potencializando o unipolarismo estadunidense; estratégia que se tornaria muito mais custosa e perigosa do que em condição bipolar ou multipolar. E mesmo que a Europa acolhesse a Rússia em suas instituições, Moscou jamais aceitaria uma posição subordinada à ordem regional e direcionado aos organismos de segundo escalão do continente; independentemente de sua força, mesmo quando o poder russo atingiu o seu ponto mais baixo.
A desqualificação do país como parceiro horizontal se aprofunda ainda mais com a crise financeira russa de 1998, quando Moscou deixa de pagar sua dívida, levando a Europa Ocidental a considerar que a transição capitalista e democrática falhara e que o país entraria em um novo período de desequilíbrio. Nesse contexto, após um período de conotação positiva, o país entra em atrito com os legados do ex-presidente Boris Yeltsin e de Mikhail Gorbachev, que consideravam a Europa como um modelo a ser seguido e avançando até mesmo na contramão da europeização da Rússia.
Esse desenrolar histórico do xadrez geopolítico levou não apenas as elites, mas também os trabalhadores russos à convicção de que, depois da Guerra Fria o experimento com a Democracia liberal, o livre mercado e a abertura política e econômica vivido pelo país nos anos 90 foi um período de humilhação que produziu desigualdades sociais e deixou a Rússia de joelhos frente aos estrangeiros. Forjou-se, para a maioria dos russos, um cenário ideológico em que o Ocidente estava constituído de inimigos potenciais claramente voltados contra a civilização russa e para os russos comuns, a Europa ocidental é atualmente um território sem rumo, liderado por elites que estão prostradas diante de Washington. Vemos, então, o solo fértil onde não por acaso renasceu, com força, o patriotismo e os nacionalismos russos.
Correndo o risco inevitável em qualquer tentativa de síntese, poderíamos resumir que este novo curso inter-relacionava-se com o reposicionamento de um papel afirmativo, diretivo e regulatório do Estado central; controle dos principais indicadores macroeconômicos para a retomada do desenvolvimento econômico e obtenção de um nível de estabilidade política que apresentaria um forte contraste com os anos turbulentos da Perestroika/Glasnost, e com o não menos problemático período da difícil e instável transição dos anos 90. E todos esses sentimentos parecem particularmente pronunciados na personalidade de Vladmir Putin.
Essa condição tornou-se potencializada a partir de 2012, com os atritos diplomáticos com o presidente estadunidense Barack Obama, o endurecimento da postura da Chanceler alemã Angela Merkel sobre a Rússia, as sanções econômicas em resposta à intervenção na Ucrânia e a tomada da Criméia; que derivou em uma autêntica guerra comercial entre parceiros privilegiados; e levou o Kremlin à assumir definitivamente que a Rússia constitui uma nação-civilização própria, para além da Europa. Com isso delineia-se uma mudança na geopolítica e a Rússia passa a re-calibrar suas políticas orientadas para o Ocidente com uma visão estratégica mais ampla, olhando também para o sul, o Oriente Médio e Norte da África e aprofundando seus laços com o Egito, além de olhar para o leste, melhorando suas parcerias energéticas e militares com a China. Do mesmo modo, passa a dar atenção para o norte, no Ártico, começando a expandir a Rota do Mar do Norte, reivindicando áreas da plataforma continental da região e reconstruindo algumas instalações militares da era soviética. Em outras palavras, a orientação da política da Rússia é tanto uma condição quanto uma escolha. E Vladmir Putin, conhece a história de seu país.
Analistas críticos das movimentações políticas e militares da Rússia têm defendido em periódicos de circulação europeia e estadunidense que, a melhor maneira de fazer o Putin mudar os rumos de sua política externa seria reverter a dinâmica política de sustentação do seu regime, cujo sistema só poderia ser vencido a partir de um choque frontal provido do exterior; econômico e militar; transformando sua metodologia política; que hoje é a fonte mais poderosa da legitimidade e apoio popular no Kremlin; numa fonte de dúvida, embaraço, humilhação e remorso. Tratou-se de um conselho perigoso e foi justamente essa a gramatica que alimentou o flexionamento dos músculos militares russos em uma cartada de precisão tecnológica nos ataques na região Síria. E Vladimir Putin não fez questão de esconder isso. Segundo disse em entrevista ao canal estatal Rossiya-1, seu objetivo é “estabilizar as autoridades legítimas e criar as condições para encontrar um compromisso político”. Essa frase é reveladora e serve de base para entender os objetivos internos e externos do presidente russo com a sua ação militar.
Desse modo, a situação tornou-se crítica para uma Rússia que se vê com a tarefa vital de se igualar ao poder ocidental para competir soberanamente com a China e Estados Unidos na reivindicação da direção “trilateral” dos rumos do planeta.
Conclusão
A Rússia de hoje é associada a um regime com elevado grau de centralização, o que a afastaria da definição tradicional de democracia liberal. O problema é saber até que ponto a comparação é justa, pois pressupõe, mesmo que de maneira implícita, que o padrão utilizado para mensurar o grau de democracia seja o funcionamento político de países com mais de 200 anos de história democrática. Aliás, essa narrativa mesma é falha. Como conceituar um país que não se enquadra no padrão de desenvolvimento político-econômico Ocidental dos últimos séculos a partir de categorias ocidentais, como autoritarismo ou democracia liberal?
Por estas razões, não há democracias paradigmáticas, e é impertinente e inconsequente o esforço daqueles que tentam medir – e julgar -, com o compasso de suas próprias experiências democráticas, a validade e o conteúdo de outras experiências que, por serem diferentes, não deixam de ser democráticas, sempre e quando souberem respeitar determinados princípios básicos.
Para quem também observa essas questões de um ponto de vista anticapitalista, talvez a crítica resida no fato de que o resgate ideológico da Rússia de hoje com respeito aos valores da URSS não toque nos pontos progressistas daquela experiência, e sim nos pontos mais nefastos e metamorfoseados: a ideologia de que o país possui uma missão especial, calibrada para justificar tanto o imperialismo expansionista quanto o nacionalismo russo num tecido social dominado por um perigoso nacionalismo que se confunde com os interesses do trabalhador russo, categoria que perturba as matizes de classe e traz sempre consigo a semente fascista.
A Rússia hoje não é um poder revolucionário de fúria desenfreada que ameaça derrubar a ordem mundial, legitimando, inclusive, o expansionismo russo enquanto modo de Defesa Nacional. Moscou opera dentro de uma escola de relações internacionais entre potências que, prioriza as margens de manobras sobre a moralidade jurídica e Putin não está nem perto de ser um autocrata que acredita na própria invencibilidade. Nesse sentido pode-se esperar que ele recue onde sentir a possibilidade de derrota ou de vitórias com baixas acima do que os russos estão dispostos a tolerar, mas Putin, o estadista, é apenas o operador que maneja com certa coerência e habilidade os interesses do Estado russo. Aliás, é a partir de Putin que se pode entender as intervenções militares russas na Ucrânia e na Síria como instrumentos para colocar um limite ao unilateralismo norte-americano, e contribuir para a emergência de um mundo multipolar – principal objetivo russo em política externa desde o final dos anos 1990.
Hoje, também, os países menores nas fronteiras da Rússia são vistos menos como potenciais amigos do que como potenciais cabeças de guerra para os inimigos. De fato, esse sentimento foi fortalecido pelo colapso soviético, mas a percepção de cercamento passou a ser maior quando a Geórgia e a Ucrânia acenaram com propostas de integração à OTAN, na esteira da segunda onda de expansão da aliança, em 2004. A saída da Ucrânia da órbita de Moscou; com sua posição geopolítica; tornaria, inevitavelmente o flanco ocidental do território russo indefensável.
Ao contrário de Stálin, Putin não reconhece a existência de uma nação ucraniana separada de uma russa. Mas, como Stálin, ele vê todos os Estados fronteiriços nominalmente independentes, incluindo agora a Ucrânia, como armas nas mãos de potências ocidentais com a intenção de brandi-las contra a Rússia. Isso porque, pelo artigo 3º do Conselho de Segurança da ONU, alguns juristas defendem que pequenos incidentes fronteiriços, estão fora do âmbito de crime contra a paz e que, apesar de enumerativo, não exauri todos os casos que podem configurar como agressão
O verdadeiro desafio atual se resume ao desejo de Moscou pelo reconhecimento ocidental em uma esfera de influência russa no antigo espaço soviético. Este é o preço para se chegar à um acerto com a Rússia.
Dito isto, também é possível que o atual impasse não termine em breve, uma vez que a busca da Rússia por uma esfera de influência Euroasiática é uma questão de identidade nacional que, não é facilmente suscetível a cálculos de custo-benefício. Virá dos próprios Russos e não imposto.
E blefar não funcionará.
Bibliografia
ADELMAN; Jonathan. Thinking the Unthinkable: Russia Has Re-Emerged As a Great Power. Disponível em: < http://www.huffingtonpost.com/jonathan-adelman/thinking-the-unthinkable-_2_b_9720304.html>
KONICZ; Tomasz. Farinha do mesmo saco. Disponível em: < http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz.htm>
KOTKIN; Stephen. Russia’s Perpetual Geopolitics. Disponível em: < https://www.foreignaffairs.com/articles/ukraine/2016-04-18/russias-perpetual-geopolitics>