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Diário Liberdade
Quarta, 25 Abril 2018 22:50 Última modificação em Domingo, 29 Abril 2018 21:20

Em busca da verdade nos escombros de Douma – e as dúvidas de um médico sobre o ataque químico

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País: Síria / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: O Diário

[Robert Fisk] Ao contrário do jornalismo mercenário que reproduz o que a máquina EUA-NATO manda dizer, há ainda alguns jornalistas que procuram investigar a verdade.

Robert Fisk, que não tem qualquer simpatia pelo regime de Assad, foi a Douma. E não conseguiu encontrar um único testemunho do «ataque com gás» que justificou mais uma agressão imperialista.

É a história de uma cidade chamada Douma, um lugar pútrido, devastado, cheio de edifícios de habitação derrubados, e onde se encontra uma clínica subterrânea cujas imagens de sofrimento permitiram às 3 maiores potências do mundo ocidental bombardear a Síria na semana passada. Há mesmo um simpático médico que, quando o localizo precisamente nessa mesma clínica, me diz com vivacidade que o vídeo do «gás» que horrorizou o planeta – apesar de todos os cépticos – é absolutamente autêntico.

Os relatos de guerra, entretanto, têm o hábito de se tornarem pesadelos. E este mesmo médico-chefe sírio de 58 anos acrescenta em seguida uma coisa profundamente perturbante: os pacientes, diz ele, foram expostos não a gás, mas a uma falta de oxigénio (hipoxia) em túneis juncados de detritos, e nas caves em que viviam, no decurso de uma noite de ventos fortes e bombardeamentos intensivos que desencadearam uma tempestade de poeira.

Enquanto o doutor Assim Rahaibani enuncia esta extraordinária conclusão, é importante observar que ele não é, segundo declara, ele próprio testemunha e que, bom falante de inglês, se refere duas vezes aos jihadistas armados do Jaish el-islam [o exército do Islão] em Douma como terroristas, a expressão com que o regime designa os seus inimigos, e um termo utilizado por muita gente em toda a Síria. Terei ouvido bem? Em que versão dos acontecimentos se supõe que acreditemos?

Também por pouca sorte, os médicos que estavam de turno na noite de 7 de Abril estão ambos em Damasco, a fim de apresentarem os seus indícios de prova a um inquérito sobre armas químicas que deverá tentar apresentar uma resposta definitiva a esta pergunta nas próximas semanas.
Entretanto, a França disse que tinha «a prova» de que tinham sido utilizadas armas químicas, e os media dos EUA citaram fontes que atestavam igualmente este facto. A Organização Mundial da Saúde declarou também que parceiros seus no terreno tratavam 500 pacientes «apresentando sinais e sintomas correspondentes a uma exposição a substâncias químicas tóxicas.»

Na mesma altura, os inspectores da OPCW [Organização para a Interdição das Armas Químicas OIAC] estão impossibilitados de se deslocar ao local do alegado ataque com gás, aparentemente porque não dispunham de autorização confirmada da ONU.

Antes de ir mais longe, os leitores devem saber que esta não é a única história em curso em Douma. Há muita gente com quem tenho discutido no meio das ruínas que declaram que nunca deram créditos a essas histórias de gás – que foram fabricadas, dizem, pelos grupos islamitas armados. Esses jihadistas de tipo especial sobreviveram sob um dilúvio de granadas vivendo nas habitações de outras pessoas e em vastos e amplos túneis equipados com vias subterrâneas escavadas na rocha com picaretas por prisioneiros, com 3 níveis sob a cidade. Ontem andei em 3 deles, imensos corredores talhados na rocha natural que continham ainda rockets russos – sim, russos – e viaturas carbonizadas.

Assim, a história de Douma não é apenas uma história de gás ou não, como aparenta. Trata-se da história de milhares de pessoas que escolheram não evacuar a zona em autocarros na semana passada, ao lado dos combatentes com os quais eram forçados a viver como trogloditas durante meses, para sobreviver. Desloquei-me ontem nesta cidade de forma bastante livre, sem soldados, sem polícias ou guarda-costas que escrutinassem o meu trajecto, apenas 2 amigos sírios, uma máquina fotográfica e um caderno de apontamentos. Por vezes tive que escalar muralhas de mais de 6 metros, ou subir penosamente barreiras feitas de terra. Felizes por encontrarem um estrangeiro entre eles, mais felizes ainda por o cerco da cidade ter enfim terminado, a maior parte sorri; pelo menos, é certo, aqueles cujo rosto pode ser visto, porque em Douma um número surpreendente de mulheres veste o hijab negro que cobre todo o corpo.

Dirigi-me em primeiro lugar para Douma enquanto membro de um comboio de jornalistas sob escolta. Mas uma vez que um enfadonho general nos anunciou, no átrio de um município destruído, que «não tinha informações» - esta desgraçada linguagem árabe oficial de notável utilidade – eclipsei-me. Vários outros jornalistas, na sua maior parte sírios, fizeram o mesmo. Mesmo um grupo de jornalistas russos – todos fardados – se afastou do grupo.
Uma pequena caminhada levou-me ao doutor Rahaibani. A partir da porta da sua clínica subterrânea – chamada «Ponto 200» na bizarra geologia desta cidade parcialmente enterrada – há um corredor que desce. Foi aí que ele me mostrou o seu modesto hospital, e as poucas camas onde uma menina chorava enquanto as enfermeiras se ocupavam de um corte que tinha por cima de um olho.

«Estava à noite com a minha família na cave da minha casa, a 300 metros daqui. Mas todos os médicos daqui sabem o que se passou. Havia um bombardeamento intenso [pelas forças governamentais] e os aviões sobrevoavam Douma sempre de noite – mas nessa noite havia vento e nuvens de poeira gigantescas que se infiltraram nos subsolos e nas caves em que as pessoas vivem. Começaram a chegar aqui pessoas sofrendo de hipoxia, com falta de oxigénio. Foi então que à porta alguém, um «Capacete Branco», gritou «Gás!», e desencadeou-se o pânico. As pessoas começaram a borrifar-se com água umas às outras. Sim, o vídeo foi aqui filmado, é autêntico, mas o que se vê são pessoas que sofrem de hipoxia – e não de envenenamento por gás.»

Surpreendentemente, depois de ter conversado com mais de 20 pessoas, não consegui encontrar uma única que manifestasse o menor interesse no papel que Douma teria desempenhado no desencadear dos ataques ocidentais. Na verdade, houve até 2 que me disseram ignorar que existia ligação entre uma coisa e outra.

O mundo em que me aventurei é estranho. Dois homens, Hussam e Nazir Abu Aishe, confidenciaram-me ser incapazes de me dizer quantas pessoas tinham sido mortas em Douma, ainda que o segundo tenha admitido ter um primo que fora executado pelo Jaish el-Islam [exército do Islão], por terem suspeitado que era «próximo do regime». Encolheram os ombros quando os interroguei acerca das 43 pessoas que se diz terem perecido quando do infama ataque de Douma.

Os Capacetes Brancos – socorristas médicos já célebres no ocidente mas cuja história apresenta interessantes recantos – desempenharam um papel entretanto já bem conhecido no decurso dos combates. São em parte financiados pelo Foreign Office, e a maior parte dos escritórios locais eram administrados por homens de Douma. Encontrei não muito longe da clínica do doutor Rahaibani escritórios seus demolidos. Uma mascara antigás com um olho vazado jazia sobre um contentor de alimentos, e uma dependência estava cheia de uniformas camuflados muito sujos. Encenação? Coloquei a mim próprio a questão, mas duvido. O local estava juncado de cápsulas, de equipamentos médicos fora de uso, de pastas de arquivo, de camas e de colchões.

Certamente que devemos ouvir a sua versão dos factos, mas não será o caso aqui: uma mulher disse-nos que todos os membros dos Capacetes Brancos em Douma tinham abandonado o seu Quartel-general e optado por embarcar nos autocarros fretados pelo governo e protegidos pelos Russos, para irem para a província rebelde de Idlib com os grupos armados, quando foi negociada a trégua.

Havia bancas de comida abertas e uma patrulha de polícia militar russa – um extra opcional agora disponível para cada cessar-fogo sírio – e ninguém se incomodou sequer em invadir a horrível prisão islamita próxima da Praça dos Mártires em cujas caves eram supostamente decapitadas vítimas. O complemento citadino da polícia civil síria do Ministério do Interior – que, insolitamente, vestem farda militar – são vigiados pelos russos, que por sua vez podem ou não ser vigiados pelos civis. De novo as minhas zelosas interrogações sobre gás foram correspondidas com o que me pareceu ser genuína perplexidade.

Como pode ser que refugiados de Douma que tinham chegado a campos na Turquia descrevessem já um ataque com gás que ninguém hoje em Douma pareça recordar? Ocorrei-me, numa ocasião em que andei durante mais de uma milha através daqueles desgraçados túneis escavados por prisioneiros, que os cidadãos de Douma viviam tão isolados uns dos outros e durante tanto tempo que as «notícias» no sentido que nós lhes atribuímos não tinham qualquer significado para eles. A Síria não corresponde a um padrão de democracia Jeffersoniana – como gosto, cinicamente, de dizer aos meus colegas árabes – e é até uma implacável ditadura, mas isso não poderia impedir estas pessoas, felizes de verem estrangeiros entre si, de reagir com meia dúzia de palavras verdadeiras. Portanto o que é que elas me estavam a dizer?

Falaram dos islamitas sob cuja dominação tinham vivido. Falaram de como os grupos armados tinham roubado casas civis para evitar os bombardeamentos do governo sírio e dos russos. O Jaish el-Islam queimou as suas sedes antes de partir, mas os maciços edifícios dentro das zonas de segurança que eles criaram tinham quase todos sido arrasados até ao chão pelos ataques aéreos. Um coronel sírio com quem me cruzei atrás de um desses edifícios perguntou-me se queria ver quão profundos eram os túneis. Detive-me depois de bem mais de uma milha quando ele observou, de forma críptica, que «este túnel poderia chegar até à Grã-Bretanha». É verdade, recordei-me, Srª May, cujos ataques aéreos tinham estado tão intimamente ligados a este lugar de túneis e de poeira. E gás?

Fonte : Robert Fisk, The Independent, 16/04/2018

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