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Diário Liberdade
Sexta, 25 Outubro 2019 01:10 Última modificação em Sábado, 30 Novembro 2019 23:31

O tsunami chileno

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Atilio Borón

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Piñera e a repressão. O regime de Piñera – e insisto nisso de "regime" porque um governo que reprime com a brutalidade que todo o mundo viu não se pode considerar democrático – defronta-se com a mais séria ameaça popular já enfrentada por qualquer governo desde o derrube da Unidade Popular em 11 de Setembro de 1973.


As ridículas explicações oficiais não convencem nem aqueles que as divulgam; ouvem-se denúncias sobre o vandalismo dos manifestantes, ou seu desprezo criminoso pela propriedade privada, o pela paz e tranquilidade, para não falar das oblíquas alusões à influência letal do "castro-madurismo" no desencadeamento dos protestos que culminaram com a declaração do "estado de emergência" pelo [palácio] de La Moneda, argumento absurdo e falacioso esgrimido anteriormente pelo corrupto que hoje governa o Equador e esmagadoramente desmentido pelos factos.

O estupor oficial e dos sectores da oposição solidários com o modelo económico-político herdado da ditadura carece totalmente de fundamento, a não ser pelo anacronismo da opulenta partidocracia dominante (uma das melhor remuneradas do mundo), sua cegueira incurável ou seu completo isolamento das condições em que vivem – ou sobrevivem – milhões de chilenas e chilenos.

Para um olho bem treinado, se há algo que surpreende é a eficácia da propaganda que durante décadas convenceu aos próprios e aos alheios das excelsas virtudes do modelo chileno. Isto foi exaltado até à saciedade pelos principais publicistas do império nestas latitudes: politólogos e académicos do bom pensar, operadores e lobistas disfarçados de jornalistas, ou intelectuais coloniais como Mario Vargas Llosa, o qual num artigo recente fustigava sem piedade os "populismos" existentes ou embrionários que atribulam a região ao mesmo tempo que exaltava o progresso "a passos de gigante" do Chile. [1]

Para os opiniólogos bem pensantes, este país é a feliz culminação de uma dupla transição: da ditadura à democracia e da economia intervencionista a uma de mercado. A primeira coisa não é certa, a segunda sim, com uma agravante: em pouquíssimos países o capitalismo arrasou tanto os direitos fundamentais da pessoa como no Chile, convertendo-os em custosas mercadorias só ao alcance de uma minoria. A água, a saúde, a educação, a segurança social, o transporte, a habitação, a riqueza mineira, os bosques e o litoral marinho foram vorazmente apropriados pelos amigos do regime, durante a ditadura de Pinochet e, com ímpeto renovado, na suposta "democracia" que lhe sucedeu.

Este cruel e desumano fundamentalismo de mercado teve como consequência que o Chile se convertesse no país da América Latina com o maior endividamento das famílias, produto da infinita privatização já mencionada que obriga chilenas e chilenos a pagarem por tudo e a endividarem-se até ao infinito com o dinheiro que lhes expropriam dos seus salários as piranhas financeiras que manejam os fundos de pensão.

Segundo um estudo da Fundación Sol "mais da metade dos trabalhadores assalariados não pode retirar uma família média da pobreza" e a distribuição do rendimento, diz um estudo recente do Banco Mundial, coloca o Chile junto a Rwanda como um dos países mais desiguais do mundo. Finalmente, recordemos que a CEPAL comprovou no seu último estudo sobre a questão social na América Latina que os 1 por cento mais rico do Chile apropriam-se de 26,5 por cento do rendimento nacional, ao passo que os 50 por cento das famílias mais pobres só tem acesso a 2,1 por cento do mesmo. [2] Será este o modelo a imitar?

Em suma: no Chile sintetiza-se uma explosiva combinação de livre mercado sem anestesia e uma democracia completamente deslegitimada, que dela só conserva o nome. Degenerou numa plutocracia que, até há poucos dias – mas agora não mais – medrava diante da resignação, desmoralização e apatia da cidadania, enganada habilmente pela oligarquia mediática sócia da classe dominante.

Um sinal de alerta do descontentamento social foi que mais da metade da população (53,3 por cento) em idade de votar nem sequer se incomodou em comparecer às urnas na primeira volta da eleição presidencial de 2017. Ainda que na votação a abstenção se reduzisse a 51 por cento, Sebastián Piñera foi eleito com apenas 26,4 por dos eleitores inscritos. Em poucas palavras, só um de cada quatro cidadãos se sentiu representado por ele. Hoje essa percentagem deve ser bastante menor e num clima onde por toda a parte o neoliberalismo se encontra acossado pelos protestos sociais.

Mudou o clima da época e não só na América Latina. Suas falsas promessas já não são mais críveis e os povos rebelam-se: alguns, como na Argentina, desalojando seus porta-vozes do governo através do mecanismo eleitoral e outros tentando com suas enormes mobilizações – Chile, Equador, Haiti, Honduras – por fim a um projecto insanavelmente injusto, desumano e predatório. Não há dúvida: há um "fim de ciclo" na região. Mas não, como postulavam alguns, o do progressismo e sim o do neoliberalismo, que só poderá ser sustentado, e não por muito tempo, a força de repressões brutais.
21/Outubro/2019

[1] Cf. "Retorno a la barbarie", El País, 31 de Agosto de 2019.
[2] Os dados da Fundación Sol são recolhidos na nota de Nicolás Bravo Sepúlveda para o jornal digital El Mostrador www.elmostrador.cl/destacado/2019/08/21 . A fonte original está em www.fundacionsol.cl/... Os dados relativos à desigualdade encontram-se num relatório do Banco Mundial: "Taking on inequality" (Washington: 2016)

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