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Diário Liberdade
Quarta, 08 Novembro 2017 13:41 Última modificação em Domingo, 12 Novembro 2017 23:38

Revolução Soviética, 100 anos depois: Olhar para a frente

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/ Batalha de ideias / Fonte: Jornal Mudar de Vida

[Manuel Raposo] “O principal erro que os revolucionários podem cometer é o de olhar para trás, para as revoluções do passado, quando a vida traz tantos elementos novos que é necessário incorporar na cadeia geral dos acontecimentos.” (Lenine, Abril de 1917)

As abordagens diversas dos 100 anos da revolução soviética (bem como a maioria das evocações desde sempre) falam sobretudo dos feitos de 1917, procurando ver a sua “actualidade” e transpondo-os quanto possível para o presente. É de certo modo uma abordagem cerimonial, que glorifica os acontecimentos e as figuras de então, mas que diz pouco sobre o que seria uma revolução “soviética” no mundo de hoje. Em muitos casos, subentende mesmo a miragem de uma repetição dos acontecimentos, quando as realidades desmentem essa possibilidade a cada passo.

Sabendo-se que o mundo é outro, cabe perguntar em que é que a revolução soviética envelheceu. Ou, dito de outro modo, em que é que o mundo em que vivemos se distingue do de há um século e que desafios novos se colocam ao comunismo.

A chamada de atenção de Lenine que abre esta página convida-nos precisamente a uma tal reflexão. É essa a condição, como ele significa, de podermos olhar para a frente.

Arriscamos afirmar que grande parte da fraqueza da esquerda revolucionária, isto é, do movimento comunista de hoje, deriva da falta de clareza sobre as transformações operadas no mundo e as condições novas que se abrem à actividade revolucionária. Não será, obviamente, nestas linhas que o problema ficará respondido, mas o convite a uma mudança de abordagem como a que Lenine recomenda fica feito.

A revolução soviética de 1917 triunfou nas condições de uma profundíssima crise do capitalismo mundial de então, que levou o mundo à guerra. Outro tanto se pode dizer da grande revolução chinesa que culminou em 1949. Mas, como as décadas seguintes haviam de mostrar, o capitalismo tinha ainda muito por onde se expandir, quer em termos geográficos, quer em desenvolvimento tecnológico. Foi isso que, em última análise, impediu novas revoluções sociais de emergirem e fechou sobre si próprias as revoluções vitoriosas — as quais, realizadas em sociedades atrasadas, tiveram a “infelicidade” de ter de se “preocupar com o pão do povo”, como Marx temia em 1852.

A necessidade da revolução social é histórica — o capitalismo não é a última etapa da humanidade. O comunismo não se extinguiu com as vitórias revolucionárias do século XX nem com o esgotamento destas. Pelo contrário, a evolução do mundo no último século criou condições inéditas para o êxito de novas revoluções de muito maior alcance. Há que olhar para a frente.

O capitalismo tomou conta virtualmente de todo o globo; não tem mais campo de expansão. Não tem o horizonte largo que tinha em 1917 nem pode acusar o “socialismo” de lhe bloquear o desenvolvimento como fez depois de 1945. Esta efectiva globalização faz com que a crise actual seja mundial e simultânea — e não apenas regional e desfasada.

Todo o sistema se encontra num beco sem saída. Não são apenas os elos fracos (como foram no século passado a Rússia, a China, os países colonizados) que podem romper a cadeia imperialista. A crise desencadeada em 2008 mostra que é o mundo desenvolvido que se afunda, arrastando para baixo todo o sistema. Mais: a estreita dependência dos diferentes tentáculos do capitalismo mundial, por cima de fronteiras, acentua a tendência para que as erupções revolucionárias se propaguem por vários países ou regiões afins.

Apesar das enormes diferenças que persistem, problemas comuns tocam os trabalhadores de todo o mundo, o que reclama uma resposta comum. O internacionalismo proletário tem condições para deixar de ser um preceito essencialmente moral, muitas vezes apenas diplomático, marcado por preconceitos nacionalistas, e passar a ser uma necessidade real, e possível de pôr em prática.

É patente que a crise que assola o capital vem de dentro, por ele ter atingido um grau de desenvolvimento que não lhe permite continuar a valorizar-se. É fruto de um desenvolvimento extremo, chegado aos limites, e não do atraso. Tudo aponta para que se tenha atingido um patamar de estagnação (como Engels previa no final do século XIX) em que pequenos momentos de valorização não anulam uma situação de marasmo geral. O “progresso” deixou de ser uma bandeira do capitalismo.

Os avanços científicos e técnicos, que impulsionaram a valorização do capital até aos anos de 1970, reduzem-lhe hoje drasticamente as margens de lucro. O capital fictício, “excedentário”, não encontra campo de valorização. A mão de obra despedida aos milhões deixa de poder consumir. A disparidade entre sobreprodução e subconsumo agrava-se, o que reforça a tendência geral para a redução da taxa de lucro. Todo o sistema está envelhecido.

Em contrapartida, a redução drástica e, em grande medida, definitiva do trabalho socialmente necessário cria condições para libertar os proletários de larga parte do trabalho compulsivo — ao contrário do que sucedia na Rússia e na China. A preocupação com “o pão do povo” não é hoje uma questão que ate as mãos dos revolucionários.

As batalhas da produção, necessárias, na Rússia e na China revolucionárias, para criar, a marchas forçadas, as condições materiais que o capitalismo não criara — com o cortejo de violência que é conhecido — estão hoje em grande parte ultrapassadas, tanto pela expansão do capitalismo ocidental, como pela transformação da Rússia e da China elas próprias em potências capitalistas.

O fim do “progresso” capitalista significa também o fim das condições materiais que deram base ao reformismo entre os trabalhadores. Não havendo condições de melhorias no quadro do capitalismo, os trabalhadores enfrentam a necessidade de romper com o capitalismo para que se possa dar a toda a gente os benefícios do conhecimento e do desenvolvimento material.

A luta pelo direito ao trabalho significa a luta pela divisão, por todos, do trabalho socialmente necessário — consequentemente, da divisão dos frutos do trabalho em função da sua utilidade social, fora de critérios de lucro. Ou seja, o fim da propriedade privada burguesa.

Em vez de verem no enriquecimento dos respectivos patrões, ou dos respectivos países, a condição da sua sobrevivência, os trabalhadores têm diante de si a evidência de que o capital é o obstáculo ao progresso das suas vidas, em qualquer parte do globo.

Coloca-se a necessidade de um sindicalismo que não se limite a reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho, mas que inscreva no seu programa “o fim do salariado”, como Marx preconizava, já em 1865, perante a Associação Internacional dos Trabalhadores. Mas se então o propósito apontava para um futuro distante, que nem as revoluções russa ou chinesa alcançaram, hoje a questão é da ordem do dia.

O Estado chegou, no mundo desenvolvido, à sua máxima organização. Revela-se, cada vez mais claramente, como instrumento de dominação de uma classe burguesa progressivamente mais estreita. Assume abertamente o papel de força repressiva dos movimentos sociais e de instrumento da valorização do capital e da exploração do trabalho. Abre brechas colossais no plano social, rompendo-se o véu do “Estado de todos nós”, de árbitro dos interesses das classes.

A imagem de um Estado reformador que cuidasse de todos por igual, que promovesse a “justa distribuição” de rendimentos, desfaz-se aos olhos de milhões de assalariados. Esta evolução do Estado acompanha a senilidade do edifício social capitalista. A corrupção das instituições democráticas é a imagem da concentração do capital e do poder.

O campo de luta política que se abre não é, pois, pela utópica melhoria do Estado burguês — eliminação dos “maus governantes”, “democratização” das instituições — é sim pela exigência de um outro Estado, de um Estado de classe proletário. Mudar o carácter do Estado exige substituir a classe no poder.

O crescimento das classes intermédias que acompanhou a expansão capitalista sofre hoje um retrocesso. Os privilégios das classe médias assalariadas degradam-se. Ao contrário de quase todo o século XX, a base de apoio do poder burguês, em vez de se alargar, restringe-se. Criam-se condições sociais para que o confronto proletariado-burguesia ganhe clareza.

Como alguém disse, devemos respeito às revoluções do passado. Mas ficarmos atados ao caminho que elas percorreram — ditado pelas circunstâncias da época — seria o pior serviço que os revolucionários de hoje poderiam prestar à bravura e à memória dos revolucionários de então.

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