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Diário Liberdade
Segunda, 13 Fevereiro 2017 00:15

Uma nota sobre as revoluções de fevereiro

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Valério Arcary

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Nós reconhecemos a nossa velha amiga, nossa velha toupeira que sabe tão bem como trabalhar no subsolo e, de repente, aparecer: a revolução. Karl Marx


Existem debates na esquerda que foram resolvidos pela história e outros que permanecem em aberto. Se há uma polêmica que foi resolvida, plenamente, é aquela que remete à questão do Estado. A luta contra o capitalismo foi sempre uma luta contra o Estado que faz a blindagem da propriedade privada. O Estado nunca foi e não é neutro. O Estado contemporâneo tem caráter de classe definido. Não está em disputa. É um Estado capitalista. Quando um partido com origem nas lutas dos trabalhadores ganha eleições, e assume o governo, se estabelece uma anomalia. Anomalias são acidentes históricos. Acidentes históricos não têm perenidade, são transitórios.

Não é possível uma luta contra os capitalistas sem uma luta contra o Estado. O Estado contemporâneo é um aparelho complexo de preservação da ordem que existe na forma de diferentes regimes políticos. O regime é a arquitetura que resulta do papel de cada uma das instituições. Ou a forma concreta como se estabelece o exercício do poder: qual o espaço previsto para o executivo, para o legislativo e o judiciário, além do lugar das Forças Armadas, e muitos outros etc.

Há muitos tipos de regime: monárquicos ou republicanos, federais ou unitários, presidencialistas ou parlamentaristas e, na maioria das nações, diversas formas híbridas. Híbridas porque mesclam aspectos de diferentes regimes, amalgamam elementos diversos. A luta contra o Estado não se desenvolve sempre nas mesmas condições.

Para o marxismo revolucionário é muito importante, portanto, distinguir o que são crises de governo e crises de regime. Esta distinção remete ao tema da aferição de qual é, em cada conjuntura, a relação de forças entre as classes. Uma crise de governo se abre quando uma das instituições do regime (em geral, a mais vulnerável: a presidência, nos regimes presidencialistas; o primeiro-ministro ou o ministério, nos regimes parlamentaristas) enfrenta a hostilidade da maioria do povo, ainda que não se tenha aberto uma situação de mobilizações generalizadas.

As outras instituições podem estar, também, abaladas e, nesse sentido, uma crise de governo vem sempre acompanhada por elementos de uma crise de regime. Mas enquanto as mobilizações de massas não se unificam, em grande escala, portanto, de milhões, em escala nacional contra o governo, não há ainda uma crise de regime.

Porque, se as outras instituições do regime mantêm-se, relativamente, intactas, podem procurar aproveitar o crédito político que ainda possuem para apresentar alternativas para a crise de governo, e encontrar uma saída nos marcos do regime. A situação pode tanto retroceder, se a solução política burguesa for bem sucedida por dentro do regime, quanto pode evoluir. Não tem consistência imaginar que toda crise de governo irá desembocar em uma crise de regime. Este tipo de pensamento, embora não seja inusitado na esquerda, é superficial. Projeta desejo como realidade. Como o projeto socialista tem pressa, porque a iniquidade do mundo em que vivemos é imensa, não é incomum. Mas é perigoso porque as falsas expectativas são a antessala das desmoralizações.

Quando se abrem processos de crise política, as classes em luta buscam acordos e alianças para reforçar as suas posições, e enfraquecer as dos seus inimigos. Terão maiores ou menores dificuldades, se a crise política coincidir ou não com uma crise social. Sem crise social gravíssima, crises de governo não evoluem para crises de regime. Porque sem crises sociais sérias, é improvável que uma crise política seja suficiente para despertar para a luta aberta milhões de trabalhadores e jovens, até então, politicamente, inativos ou desesperançados. As massas só se levantam com a perspectiva de que podem vencer e, pela luta, mudar os seus destinos.

Nessas circunstâncias de crise social, a maioria dos trabalhadores e do povo compreenderá, a partir de cada confronto, aceleradamente, quais são os interesses que estão em conflito, quais são os fins que são perseguidos, e quais os meios que estão dispostos a usar. Compreenderá mais ou menos rápido, se encontrar nas organizações que reconhece como suas um ponto de apoio para avançar. Este processo é o da construção da consciência de classe. Só é possível, em grande escala, diante do choque de grandes acontecimentos.

Em uma palavra, a questão é saber quem está acumulando forças, e está se fortalecendo, e quem está ficando mais isolado. Enquanto nenhuma derrota decisiva venha a interromper o processo de radicalização, a sociedade se inclina à esquerda. O que significa essa inclinação à esquerda? Significa o crescente isolamento das classes proprietárias, incapazes de continuar apresentando os seus interesses, ou o seu poder, como aquilo que corresponde aos interesses gerais da nação. Neste processo de mudanças nas relações de forças há passagens que são quantitativas, e outras qualitativas.

O tema não é simples. Não é incomum, por exemplo, que se confunda uma crise política com uma crise de regime. Uma crise política se abre quando diante de certos conflitos de maior significado, o bloco de partidos de sustentação do governo se divide, expressando as pressões contraditórias das diferentes classes e frações de classe que o apoiam. A burguesia e seus aliados sociais se fracionam sobre o melhor caminho para a preservação de seus privilégios, e o povo vê esta divisão como uma oportunidade.

Uma das principais virtudes do regime democrático para a dominação burguesa é que ele permite absorver, sem maiores sequelas, as disputas interburguesas como parte de uma rotina administrativa do exercício do poder. A crise pode se fechar, se o governo for capaz de rearticular novas alianças que ampliam a sua base social, ou pode se aprofundar, e se tornar um processo crônico. Em situações não revolucionárias, em que os trabalhadores estão na defensiva, e suas lutas são, portanto, de resistência, alternam-se conjunturas de maiores ou menores crises políticas, que se abrem e se fecham em função de realinhamentos partidários e parlamentares. Explosões desorganizadas e acéfalas de fúria em setores populares podem acontecer, mas serão inférteis. A tempestade no andar de cima é somente isso, enquanto as massas populares não se colocam em movimento com um programa próprio.

Uma crise de regime é sempre algo, incomparavelmente, mais grave. Só se abre quando são já várias as instituições, além do governo, que estão em causa: os tribunais, ou a polícia, os parlamentos, as assembleias ou câmaras, e as massas perdem as esperanças de que as mudanças às quais aspiram possam ser feitas por dentro do regime. Quando não acreditam mais na espera para colocar o voto nas urnas para levar ao poder a oposição eleitoral. Quando não acreditam mais que a solução passa por entrar com petições na justiça para que os tribunais as protejam. Mas, sobretudo, quando setores organizados da classe trabalhadora decidem lutar para valer.

Nessas circunstâncias, podemos dizer que uma crise de regime se abriu. A crise de regime é uma das condições de uma situação revolucionária, mas não é suficiente. Uma revolução está “em marcha”, mesmo considerando que poderão ocorrer flutuações de conjunturas, com mudanças de sentido na relação de forças entre as classes, somente quando há uma onda de lutas de dimensão nacional com força incontível, ou seja, com disposição revolucionária.
Nessas situações as massas populares passam a agir por conta própria, e buscam a via das ações políticas unificadas para derrubar o governo. A crise de regime corresponde, grosso modo, a uma situação revolucionária prévia a uma revolução de fevereiro. Revoluções de fevereiro são revoluções políticas. Revoluções políticas podem ser a antessala de revoluções sociais. Mas essa é somente uma das dinâmicas possíveis. Existem outras.

Revoluções políticas podem, também, estagnar. Dependerá de fatores variados, em primeiro lugar, o papel dos sujeitos sociais. A entrada em cena, em forma independente, dos trabalhadores em geral, da classe operária, em particular, como principais protagonistas, por exemplo, se o país for uma sociedade já urbanizada e industrializada. Quando se abre uma situação revolucionária, começa a se manifestar a tendência a que as massas busquem criar organismos para resolver o que querem. e é desse processo de organização que poderá surgir a dualidade de poderes, e a experiência de uma democracia direta com base de massas.

Existem, por outro lado, diferentes graus de gravidade em uma crise de regime: ela pode evoluir de uma ruptura parcial das expectativas e esperanças com os processos eleitorais, até um repúdio encolerizado com todas as instituições da ordem político-estatal. Uma crise de regime, portanto, ao se iniciar, corresponde, pelo menos, a uma situação pré-revolucionária: exige que as massas já tenham encontrado as forças em si mesmas para iniciar uma vaga sustentada de lutas, ainda que não estejam unificadas. E deve se manifestar em um processo de divisão no interior da própria classe dominante, menos na forma de querelas partidárias e parlamentares, que respondem a um jogo de pressão mútua rotineira, ou na forma de conflitos entre as instituições (executivo, parlamento e justiça), e no interior delas.

Quando os trabalhadores e a juventude conseguem, nos países mais urbanizados, através de suas lutas, arrastar atrás de si a simpatia da maioria do povo, e logram resolver, subjetivamente, os obstáculos à unificação de suas mobilizações, a situação já é revolucionária, ou está em vias de se tornar.

Mas, além disso, é necessário que a crise do regime se agrave, e que se manifestem divisões insuperáveis nas classes dominantes: agora, não mais, na forma de conflitos parciais, mas em uma disputa aberta de direção em torno a projetos, irremediavelmente, contrapostos.

Devemos, no entanto, recordar que a flutuação das relações de forças não possui nunca um signo pré-definido, e as inversões de sentido, ascendente ou descendente, seguem o fluxo das pequenas batalhas que se ganham ou que se perdem: as mudanças de conjuntura, tanto podem fazer uma situação pré-revolucionária retroceder para uma situação não revolucionária ou reacionária, como avançar para uma situação revolucionária.

O tema das medidas das relações de forças merece a nossa atenção. A questão mais importante, todavia, é que a relação de forças não se resume a uma quantificação de para onde pendem, em um determinado momento, as expectativas e opiniões de uma maioria de 50% mais um dos cidadãos. O que se esquece, é que as relações de forças, na luta de classes, dependem, em primeiríssimo lugar, do grau de atividade sindical ou política das massas populares. E isso é algo que se pode e se deve medir com critérios claros.

Mas tudo isso não significa, ainda, que já existam as condições para a vitória da revolução política, isto é, para a derrubada do governo e do regime. Em outras palavras, a crise do regime pode ou não evoluir em um processo de desestabilização em vários graus de profundidade: primeiro ela atinge as instituições mais frágeis, para depois contaminar aquelas que são mais poderosas.

A crise do regime só se completa, quando atinge o “núcleo duro” do Estado, ou seja, as Forças Armadas, e as divisões das forças sociais e políticas em luta, penetram, de alguma maneira, nos quartéis, mesmo que a cadeia de comando não tenha se rompido, e a divisão se expresse no interior da alta cúpula somente. Só então podemos falar de uma crise revolucionária. Mas é preciso não esquecer, que este processo, somente explica a radicalização na luta de classes que está raiz das revoluções de Fevereiro, isto é, das revoluções políticas.

A história já demonstrou incontáveis vezes que o triunfo de Outubros, ou revoluções sociais, é muito mais difícil e complexa. Porque as condições subjetivas para deslocar o Estado são muito mais elevadas do que aquelas necessárias para derrubar o governo.

Fonte: Blog Esquerda Online.

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