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Diário Liberdade
Sexta, 26 Mai 2017 20:57 Última modificação em Segunda, 29 Mai 2017 19:04

Remedievalização

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Rafael Silva

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[Rafael Silva; Laboratório Filosófico] A Idade Média não se reconhecia como tal. Esse nome epocal foi dado a posteriori, pela modernidade que a seguiu, para indicar o período mediano, intermediário, de mil anos, que separou a grandeza da antiguidade até Roma do século V da grandeza da modernidade Europeia a partir do século XV. A Idade das Trevas, como o século XIX se referia ao medievo, caracterizou-se pela ruralização, pelo isolamento social e pelo obscurantismo da fé em detrimento da urbanização, do cosmopolitismo e do uso da razão.


Isto está sendo colocado aqui para perguntarmos se a história porventura estaria se repetindo, isto é, se o nosso mundo pós-moderno, no qual a globalização e a ciência promovem um desenvolvimento sem igual e aparentemente irreversível, não está se encaminhando para um intermédio histórico trevoso que, uma vez estabelecido, negará os nossos mais elevados valores contemporâneos. Assim como a urbe máxima romana produziu a grande noite histórica conhecida como a Idade Média, assim também a nossa babilônia pós-moderna por acaso não está produzindo um novo e inevitável regresso epocal?

Dizem os historiadores que Roma, e toda a sua surpreendente grandeza, ruiu devido às invasões bárbaras. Levados pela literalidade dessa definição, desde a escola imaginamos que se tratou de ataques muito pontuais e objetivos de bandos bárbaros contra Roma que, depois de algum tempo, devassaram definitivamente a Cidade Eterna, nada deixando aos altivos cidadãos romanos senão a timidez da escuridão medieval.

Entretanto, para mim, a melhor explicação – histórico materialista – desse fato se encontra em uma nota de rodapé de Karl Marx, em O Capital, segundo a qual foi a própria imensidão do Império Romano, mais especificamente a insustentabilidade dessa imensidão, que fez com que, paulatinamente, a sociedade romana precisasse de mais mão de obra e insumos de toda espécie advindos de povos cada vez mais distantes, dos bárbaros, que se tornaram fundamentais à opulência romana. E não tardou até os bárbaros perceberem essa sua centralidade, de modo que, em vez de “invadirem” Roma, eles apenas assumiram que ela já era sua.

Nesse sentido, o atual “povo distante e estanho”, sem o qual as essenciais bugigangas ocidentais, eletrônicas ou não, não são mais possíveis; povo esse cujo dinheiro inclusive salvou os bancos norte-americanos da mega crise financeira de 2008, qual seja, a China, pode estar para o nosso mundo assim como os bárbaros estiveram para o mundus romano. Porventura não será só questão de tempo até a China perceber que o mundo é ela, e então fazer dele o que bem entender?

Todavia, os “bárbaros” que imediatamente ameaçam a nossa contemporânea pax globalizada e cosmopolita são, com efeito, os terroristas religiosos/muçulmanos. Os cada vez mais frequentes atentados de terror que explodem nos/os nossos grandes e populosos centros urbanos – para, obviamente, terem maximizados os seus efeitos destrutivos -, criam imensa desvantagem em se viver em opulentas cidades. Preferir vilarejos e locais esquecidos do mundo, hoje em dia, parece ser o melhor antídoto, tanto contra as organizadas alcateias terroristas, quanto contra os proliferantes “lobos solitários”.

O próprio Império da Ciência, imbatível em se tratando de verdade e de interferência na vida de todos, está, inacreditavelmente, perdendo espaço para toda sorte de crenças e opiniões infundadas, atualmente chamadas de pós-verdades. Intempestivamente, até mesmo universidades reconhecidas decidem investir mais na desacreditada teoria criacionista em detrimento da cientificamente comprovada teoria evolucionista. Será que a base ideológica/religiosa dos “bárbaros terroristas” de que falávamos acima é um terrorismo colateral ao terrorismo explícito que eles espalham pelo mundo?

O neoimpério do dogma sobre a ciência é espécie sorrateira de terrorismo que, entretanto, não tem como ser detectado por leitores de raio-X nem, consequentemente, eficientemente contido. Com efeito, os vigorosos fundamentalismos religiosos, seja o bélico muçulmano, seja o endêmico evangélico pentecostal, são freeways para o passado que pedágio epistemológico moderno algum está conseguindo controlar. O que anda restando aos grandes intelectuais da contemporaneidade contrários a essa onda, infelizmente, é apenas discorrer sobre o neo-obscurantismo que cresce e avassala o mundo científico qual tsunami.

Não podemos deixar de falar dos impertinentes ímpetos xenófobos, racistas, machistas, sexistas e homofóbicos que, com Trump, nos EUA, Le Pen, na França, Petry, na Alemanha, e Bolsonaro, no Brasil, reconduzem-nos a um passado – nem tão distante assim – cuja validade, contudo, parecia ter sido superada. Talvez o passado deva ser encarado como um monstro que nunca morre, mas que sobrevive em modo zumbi, apenas aguardando que o presente baixe sua guarda para atacá-lo no pescoço e sugar a vida que corre em suas veias.

O propósito de listar – alguns – contemporâneos movimentos da nossa dita “sociedade evoluída”, no entanto, em direção a uma extemporânea involução, é perguntar se evolução demais, como desejamos e planejamos, é possível. Assim como Roma, que elevou a quantidades inimagináveis as comedidas qualidades do mundo antigo, foi a produtora da regressão sócio/cultural/urbana trevosa posteriormente chamada de medievo, assim também o nosso mundo contemporâneo superdesenvolvido pode estar sendo o produtor sorrateiro de uma remedievalização do mundo.

Como, vulgarmente, pensamos que tudo o que está indo contra os nossos planos de um mundo ainda mais desenvolvido trata-se apenas de erros a serem sanados, e não, como Marx diria, do resultado material e inevitável dos modos de subsistência da nossa sociedade capitalista globalizada, essas crescentes rachaduras no nosso aparentemente inabalável edifício pós-moderno não são devidamente encaradas. Desse modo, ruem o modus vivendi contemporâneo apressando a sua queda. Se ainda não estamos tombados no chão do passado zumbi que nunca deixou de sustentar as nossas democráticas e digitais torres de marfim (pós)modernas, talvez seja apenas questão de tempo até isso acontecer.

E não nos surpreendamos se trevas tais como as medievais, que estão demasiadamente próximas no nosso cosmopolita horizonte contemporâneo, fecharem o tempo de vez e criarem uma tempestade incontrolável por, digamos, outros mil anos. Infelizmente, qualquer apelo para se evitar tal destino parece ser apenas ingenuidade, uma vez que são precisamente os nossos modos de pensar e de viver os maiores catalisadores do nosso ingresso às “neotrevas”; mais ou menos como os romanos, que, democratizando desde água encanada e esgoto a direitos inalienáveis de cidadania, acreditavam estarem construindo mais evolução, mas que, como a história nos conta, apenas gestaram, no ventre de sua crescente e inacreditável opulência, aquilo que a aniquilou.

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