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Diário Liberdade
Quinta, 25 Mai 2017 12:33

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 6

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

Quando saltamos a terceira cerca, o coyote a cargo do nosso grupo começou a correr e seguindo suas instruções também corremos nós. Tínhamos de nos afastar da linha divisória o quanto antes fosse possível (e impossível) porque estava por iniciar a caça da Patrulha Fronteiriça.


Quando estávamos em território mexicano nos foi explicado em uma espécie de jogo como o do “gato e rato” como funciona a Patrulha Fronteiriça: dá um lapso de tempo para que os indocumentados cruzem a fronteira e corram para logo caçá-los com suas armas de franco-atiradores, pistolas cromadas, choques elétricos e cães treinados soltos em manadas para encurralar os migrantes, a maior quantidade possível deles, para depois trancá-los em carceragens e presídios. No final dessa história, são deportados. A angústia das companheiras que já haviam tentando a travessia durante a semana e foram deportadas é que em caso de serem presas novamente, a Patrulha Fronteiriça repetisse os procedimentos adotados anteriormente: o abuso sexual. Tudo aquilo me parecia inverossímil como se eu estivesse dentro de um pesadelo e não pudesse sair, despertar.

Com o cansaço dos quilômetros caminhados cruzamos as cercas da linha divisória e começamos a correr em um misto de angústia e adrenalina de quem já está com um pé dentro do caixão. A mim ninguém falou que assim era o deserto, tampouco falaram para as centenas de pessoas que estavam ali naquela noite, porque ninguém conta a realidade vivida nessa travessia ou não conseguem contar. Os coyotes, se dizem a verdade, perdem clientela. E quem já chegou não conta como foi porque quer bloquear essas lembranças ou simplesmente não conta aos outros como foi essa tortura porque não.

Me encontrei com uma realidade totalmente distinta da que me haviam pintado e já não podia dar marcha ré mesmo que desejasse naquela hora, contudo em nenhum momento passou pela minha mente o arrependimento. Desde pequena a vida me ensinou a afrontar as conseqüências das minhas decisões, por piores que fossem, como ocorreu em mais de uma ocasião. Da ousadia que traçou a história da minha vida não me arrependo nem por um segundo, vivi o que estava no caminho para mim.

“Por que você é tão insensata?”, perguntava minha mãe ao longo da minha vida. Sou a filha que lhe deu muito trabalho no alto dos seus 30 anos de idade. Meu caráter de demônio e o fazer tudo ao contrário, no meu passo, no meu tempo e não no dos outros, me ensinaram a brigar onde outros desistem.

Essa mesma necessidade que me habita foi o que me salvou a vida no deserto em mais de uma ocasião. Minhas necessidades são as que também nas contradições que formam parte de mim me deram tantos momentos fugazes de felicidade.

Começamos a correr atrás do coyote para não o perdermos de vista entre as centenas de outros grupos que também corriam tratando de se afastarem o mais rápido possível da fronteira. Passada a passada, com as pernas pesadas, a uma velocidade que só a angústia e o sobressalto são capazes de conceder em uma pessoa em contraposição ao que o medo trata de paralisar.

O terreno estava nas piores condições possíveis, as pedras eram maiores e a cada passo alguém torcia um tornozelo ou desabava raspando os joelhos, isso quando conseguia meter as mãos para melhorar a queda, mas quando não conseguia, o golpe era no rosto e em cima dela passava a turba, literalmente, essa massa de gente que não parava para pensar em nada e ninguém mais além de salvar a própria pele.

Quando já havíamos avançado um quilômetro, ainda correndo, peguei uma pedra do chão e meti no bolso da minha calça. Para não me confundir, peguei uma menor do que a recolhida no deserto de Sonora e já tinha, pois, dois amuletos. Os empunhei pensando que em caso de sobreviver iria contar a história da travessia paras as gerações seguintes do clã Oliva Corado e como prova estariam as pedras, o que não sabia e isso me surpreendeu imensamente, é que o azar mais tarde me transformou em escritora e que a experiência dessa travessia e os capítulos da minha vida estão sendo contados em letras e não apenas na minha própria voz de anciã sentada em uma mesa rodeada de sobrinhos netos, bebendo café em um quintal na hora da oração na minha terra natal Comapa.

Abandonei por completo a fantasia de um seio familiar para abrir passo firme entre os ventos que não conhecem fronteiras e idades. Tenho 34 anos e cada segundo da minha existência foi habitado intensamente, fazendo parecer mais que uma vida a que levo impregnada na minha pele. Estou convencida que sou uma raridade de ser atemporal.

Corremos três quilômetros sem parar até que alcancei o coyote e lhe pedi que descansássemos por pelo menos três minutos para que todos tomássemos água. Nesse momento cresceu em mim uma preocupação pela saúde de todos que no caminho e empurrados pelas circunstâncias haviam contado seus males: artrite, diabetes, problemas respiratórios e no coração. Me preocupava o sobrepeso de três deles que não lhes permitia avançar ao passo exigido, uma senhora de 55 anos que dizia que tinha dor nas juntas e usava sapato social ao invés de tênis, um dos que ia de botas já tinha bolhas, o grupo não estava caminhando junto, uns ficavam desgarrados, e era perigoso porque por causa de um desgarrado podiam pegar todos nós, tínhamos que nos mobilizar o mais rápido possível, sem fazer barulho e sem lamentos.

O menino coyote, menino porque alguém de 18 anos de idade segue sendo um menino e ainda mais em circunstâncias tão extremas como essa, a única indicação que dava era que os que sentiam que já não agüentavam se escondessem entre os cactos e esperassem o amanhecer para serem resgatados, mas que o resto deveria continuar. Ele não fazia idéia de como manejar a situação. Eu tinha 23 anos e era uma menina também, mas nesse instante meu instinto mais selvagem e creio que o desejo de sobreviver me fizeram falar ao grupo: dois goles de água e nada mais, e a fazer alongamento para oxigenar os músculos, tendões, ligamentos e articulações, para evitar as câimbras e a fadiga muscular. Em tais infernos aquilo era uma burla tremenda, mas algo tinha que ser feito para tentar manter o grupo estabilizado em torno de algo mínimo.

Aprender a respirar corretamente; inalando pelo nariz e soltando o ar pela boca, tratar de reter o ar nos pulmões a maior quantidade de tempo possível, se as pulsações cardíacas não os permitam então mudar o ritmo da respiração, inalar duas vezes e exalar duas vezes seguidas para dar tempo ao coração de se recuperar, estas são técnicas utilizadas no atletismo.

A maioria havia começado a chorar e a desistir, a encher-se de lamentos e de perguntas, o medo começava a causar paranóias e alguns acreditavam estarem já mortos caminhando em busca das suas próprias sepulturas. Recordei meus anos de menina internada em montanhas com meu isopor de sorvetes no ombro, cansada, sob o sol ardente buscando vendê-los em outros bairros e povoados. A dor nas costas baixa me lembrou dos anos que trabalhei colhendo morangos que seriam exportados aos Estados Unidos. Não, o deserto não ia acabar com a minha vida. Sempre acreditei no poder de cura dos abraços e dei um abraço em cada um dizendo-lhes que viveríamos todos ou morreríamos todos mas que juntos íamos chegar até o final. Minhas palavras devolveram a confiança e a força para continuar, e assim fizemos.

Começamos a trotar novamente e outra vez o coyote se afastou do grupo, pois já tinha a preparação física adequada e a experiência em eventos de travessia. No grupo, quem tinha essas habilidades era eu, então me transformei no laço que não deixou que ele, o coyote, se apartasse por completo e nos abandonasse. Sempre o alcançava, fazia esperar o grupo que seguia de cinqüenta a cem metros atrás. Estávamos já a uns dez quilômetros da fronteira quando uma das companheiras soltou um grito que nos deteve a todos. Havia torcido o joelho e era impossível continuar.

Corri para ajudar enquanto o resto se escondia entre os escassos matagais, não mais de dois em cada espaço porque os vultos também eram detectados por sensores colocados no deserto pela Patrulha Fronteiriça, por ser um lugar onde há muito translado de drogas. O que temia: a moça teve um rompimento de ligamento e em segundos a parte lesionada se encheu de hematomas e inflamação. Necessitávamos gelo e antimflamatórios, uma bota ou tala e nada disso estava ao alcance. A dor a fazia gritar, imediatamente tirei meu capuz e lhe disse para morder. Tirei as vendas da mochila e o ungüento para lesões, isto daria frio e calor e a ajudaria em algo mínimo. Um companheiro levava comprimidos para dor de cabeça e ela as tomou, tentávamos deixá-la em pé mas devido a severidade da lesão era impossível que caminhasse.

O coyote disse que não podíamos ficar ali por ela e que era conhecimento geral não arriscar todo o grupo por uma pessoa, a solução então era que ficasse ali a esperar que os cuatreros não fossem mais além da violação e a deixassem viver ou a Patrulha Fronteiriça que além de violar a moça ainda a levaria a um centro de detenção. Lhe foi dito para que rezasse para que fosse  a Patrulha Fronteiriça a encontrá-la primeiro.

A garota tinha 25 anos, robusta, de estatura média, um pouco mais alta do que eu. Quando escutou as palavras do coyote começou a chorar com mais sentimento, enquanto o resto exigia que avançássemos porque a La Migra podia nos encontrar. A lesão da moça fez sobressaltar a verdadeira essência dos que iam nesse grupo e todos votaram por deixá-la, menos o homem que lhe deu os comprimidos e eu. Ele que desde o início do percurso levava sua bíblia em mãos, começou a rezar por ela e entre nós dois que a ajudamos a se colocar em pé e cada um lhe ofereceu um braço. A apoiamos para que não precisasse mais por no chão o pé lesionado. O problema é que ele era mais baixo de estatura que nós e, enfraquecido, fez com que o peso dela caísse para o meu lado.

Já não podíamos correr nem trotar e o avanço teve que ser lento. Ficamos desgarrados a uma distância de cem metros do grupo que avançava uniforme com o coyote. Era uma da manhã e logo iria amanhecer. Tínhamos de chegar ao ponto de encontro antes que saísse o sol para não ficarmos expostos à luz do dia, mais visíveis aos helicópteros e aviões policiais.

A poucos metros de nós também transitavam outros grupos que se dirigiam a Douglas, Arizona. Aquilo era uma romaria de presságios de finados. Caminhávamos no maior dos silêncios quando de repente as luzes de motocicletas e caminhões da Patrulha Fronteiriça acenderam, cegando-nos durante instantes, o que nos desorientou por completo. A caça estava apenas começando.

Glossário:

Coyote – Pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

Cuatreros – Nome genérico para gangues que assaltam migrantes em travessia.

La Migra – Apelido para a Patrulha Fronteiriça e outras forças policiais de controle estadunidenses presentes na região. 

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