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Diário Liberdade
Quarta, 13 Novembro 2019 01:14

Política identitária é política de direita

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António Santos

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A teoria da política identitária que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e, portanto, abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou solidariedades.


Escrever é arranjar problemas. Antecipando os nomes que algumas pessoas me vão chamar (sectário, racista, homem hétero cis branco, etc. mas sejam imaginativos) quero começar com uma nota prévia: estou solidário com Joacine Katar Moreira, vítima de uma infame campanha de ódio racista; repudio os grunhos dos imbecis que a acusam de fingir a gaguez; não ponho em causa a total legitimidade do seu mandato como deputada e fico genuinamente feliz por ver mais mulheres negras no parlamento. O meu problema não é com a Joacine, nem com a sua gaguez nem, muito menos, com a cor da sua pele ou a sua nacionalidade. O meu problema é com o Livre e é estritamente político.

A vida política de Rui Tavares resumia-se, até há um mês, a uma aborrecida sucessão de falhanços oportunistas: do anarquismo life style a deputado europeu do BE quando estava na moda ser do BE; do híper-europeísmo muito a piscar o olho ao PS ao comentário político de académico anti-séptico. Mas, como aqueles empresários que antes de chegar ao sucesso tiveram de levar seis empresas à falência, Rui Tavares foi capaz de olhar para o estrangeiro e perceber que, em 2019, o investimento demagogicamente mais rentável não é o anarquismo, nem a União Europeia, nem a esquerda nem a direita, nem qualquer ideologia. Nos anos vinte deste século, deduziu Tavares, as oportunidades gravitarão em torno de dois novos pólos políticos: o «populismo» e o «identitarismo».

A aposta do barão trepador rendeu finalmente dividendos políticos. A deputada do Livre monopolizou com estrépito mediático todo o debate político em torno de «causas fracturantes» como a sua aflitiva gaguez, a saia do seu assessor, Rafael Esteves Martins, ou uma bandeira guineense a ondear num comício. Pode-se dizer que a culpa é dos esqueletos que tínhamos no armário, mas a reencarnação identitária do Livre não foge aos encargos da agenda identitária: transforma a saia no pretexto para uma entrevista no programa do Goucha; transforma a gaguez real numa performance mediática que dispensa ajudas e desperta ódios e paixões e transforma a sua representação num fim em si mesmo, pelo que dispensa ideologias e propostas políticas. A política de Joacine é a identidade de Joacine.

Em entrevista ao Expresso, a Joacine Katar Moreira era ainda mais clara: «Represento as mulheres negras, os homens negros, as mulheres em situações de empobrecimento, os homens em situações de empobrecimento, os investigadores com uma vida instável». Ou seja, Joacine está convencida de que tem um mandato para representar não só as pessoas que votaram nela, mas, por condão da sua identidade, todos aqueles que são como ela: negros, gagos, investigadores, etc. Independentemente do que proponha e vote no parlamento ser indiferente ou mesmo contrário aos interesses destas pessoas.

Rostos africanos em lugares palacianos

Os afro-americanos têm, há muito tempo uma expressão muito feliz: «black faces in high places», qualquer coisa como «rostos negros em lugares importantes». Nunca, nos EUA, houve tantos políticos negros a ocupar cargos públicos. Apesar do recorde histórico, estes políticos negros são politicamente indistinguíveis dos políticos brancos. No Congresso dos EUA contam-se, entre democratas e republicanos, 43 eleitos afro-americanos, o maior número de sempre e que tem vindo a subir de eleição para eleição. O problema é que esta tendência não correspondeu a qualquer alteração qualitativa no combate ao racismo.

Olhemos para o exemplo de Baltimore, onde homens e mulheres negras controlam praticamente todo o aparelho político da cidade, incluindo o executivo da autarquia, a presidência, a assembleia municipal, a polícia, o sistema escolar e os transportes públicos. Apesar de tantos rostos negros em posições importantes, a violência racista continua a ser o dia-a-dia de milhares de negros, que também continuam a ser mais pobres, a ter menos acesso à educação e a viver em bairros mais degradados.

Quando, em Filadélfia, dois polícias prenderam um homem negro por estar a beber um café no Starbucks, o chefe da polícia, também negro, defendeu a acção dos racistas. E quando, num restaurante de Warsaw, na Carolina do Norte, uma criança negra foi espancada e quase sufocada até à morte por um polícia, o presidente da câmara, também negro, defendeu a brutalidade policial.

Os EUA tiveram um presidente negro, um marco histórico de inegável valor simbólico que, para além do simbolismo, não beliscou o racismo institucional, sistémico e estrutural.

Então, afinal, por que razão os criminosos de guerra Colin Powell e Condoleezza Rice não se preocupavam com o racismo? Por que razão a neoliberal Margaret Thatcher não se preocupava com os direitos das mulheres? Por que razão o fascista Milo Yiannopoulos, homossexual assumido, não se preocupa com direitos LGBT?

Dividir para reinar

A teoria da política identitária que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e, portanto, abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou solidariedades. Para os identitários, por exemplo, a luta «de todas mulheres» exclui «todos os homens» porque «todos os homens» têm interesse em continuar a oprimir as mulheres. Por esta lógica, os homens nunca estarão do lado das mulheres porque quererão sempre que elas continuem a desempenhar mais trabalho doméstico, por exemplo. Da mesma fora, «todos os negros» estariam condenados a lutar sozinhos contra o racismo porque «todos os brancos» beneficiam dessa opressão e só um homossexual poderia representar a causa LGBT porque «todos os heterossexuais» tiram partido dessa discriminação. Para os identitários, a raiz do problema não é a infra-estrutura capitalista, mas a infra-estrutura dos homens brancos heterossexuais, pelo que a solução do problema passa necessariamente pelo reforço da representação das mulheres, dos negros, dos gays ou das pessoas com deficiência nos concelhos de administração dos bancos, nos exércitos imperialistas e nos partidos de direita.

O resultado é a atomização absoluta das identidades e das causas: cada um de nós teria de escolher se vota no partido do anti-racismo ou no partido dos reformados; se adere ao partido dos gays, das mulheres ou ao partido dos trabalhadores; se luta pelos animais ou pelo serviço nacional de saúde. Consequentemente, cada um de nós estaria impedido, por «lugar de fala», a pronunciar-se acerca de todas as outras lutas, atiçando uns oprimidos de um tipo contra oprimidos de outro tipo, numa competição em que só ganham os poderosos. Nos EUA, por exemplo, tornaram-se comuns discussões caricatas sobre «quem é mais privilegiado»: uma mulher branca ou um homem negro? Uma mulher muçulmana e negra ou uma mulher branca com deficiência e pobre?

Se é verdade que, historicamente, todas as libertações foram obra da luta dos oprimidos, essa opressão só pode ser definida rigorosamente a partir dos interesses dos oprimidos e não a partir de identidades abstractas. Ao contrário do que dizem os identitários, a exploração dos imigrantes só serve para baixar os salários de todos os trabalhadores; a discriminação salarial das mulheres exerce uma pressão descendente sobre o salário dos homens e o racismo e a homofobia são usados para dividir pessoas que comungam dos mesmos interesses. Estes interesses atravessam as identidades ao longo da História: a luta das mulheres ao longo dos últimos duzentos anos fez-se com a solidariedade de muitos homens; a luta dos negros contra o colonialismo fez-se com a ajuda de soviéticos brancos. A universalidade da luta de classes ecoa em todas as lutas: transsexuais, homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas com deficiência, imigrantes.

Guerra às elites, paz à ralé

É esse o apelo e a utilidade do comunismo enquanto poderosa união de todos os explorados contra todas as opressões. É por isso também que uma trabalhadora das limpezas negra tem mais em comum com uma colega branca do que com Joacine Katar Moreira, que acha que quem escreve a história são as «elites empáticas e inteligentes». Não o povo, não os oprimidos, não os explorados, mas as «elites», que o dicionário define como a «minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência». As «elites» de Joacine, quer sejam brancas ou negras, não têm interesse material no derrube das estruturas racistas; da mesma forma que as mulheres que exploram outras mulheres não têm interesse material na igualdade salarial.

Caras negras em lugares importantes podem servir apenas para desviar a discussão sobre o racismo estrutural, institucional e histórico, para uma questão de símbolos e elites. O sistema capitalista é capaz de absorver mulheres, gays e negros para as tais «elites» por que suspira Joacine sem que nada de essencial se altere. Na verdade, para os opressores pode até ser politicamente conveniente ter oprimidos a representá-los.

Essa é a realidade da identidade de Joacine: ela representa as elites e assume-o. Foi nos bairros dos ricos (Lapa, Campo de Ourique, Paço de Arcos, Cascais) que Joacine somou mais votos, não foi nos bairros dos negros pobres; e foram também os académicos, os intelectuais, os professores, as elites, que em sua defesa fizeram um abaixo-assinado em que não entram pés-rapados.

Da mesma forma, Rafael Esteves Martins, o assessor de Joacine e do Goucha, hoje diz que os conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados. O que não está ultrapassado é o conceito de «negro» e de «branco», suponho. Conciliar explorados com exploradores, dividindo os explorados; eis é a velha consigna do capitalismo, da direita e da reacção. E é por isso que todos os dias são 25 de Novembro na «agenda identitária» do Livre.

Fonte: Abril Abril.

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