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Terça, 17 Janeiro 2017 22:16 Última modificação em Terça, 17 Janeiro 2017 22:22

O seu a seu dono (Na morte de Mário Soares)

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País: Portugal / Institucional / Fonte: Jornal Mudar de Vida

[Manuel Raposo] Do enorme esforço de propaganda desenvolvido, até à náusea, nos dias seguintes à morte de Mário Soares ressalta o propósito de criar a imagem de um Soares coerente em todo o seu percurso de vida política — antes e depois de 74 —, sempre do mesmo lado da barricada.

É um expediente que convém à direita e ao poder instalado, que por isso o crismam sem problemas de “pai da democracia” e o apresentam como lutador indefectível pela “liberdade”. Soares é de facto um dos pais desta esvaziada democracia e da liberdade sem freio de que desfruta a burguesia pós-abrilista. Mas não mais do que isso.

Para elevar o antifascismo de Soares aos cumes que ele não atingiu, a onda de propaganda apagou desavergonhadamente toda a resistência dos milhares de lutadores (anónimos ou não, comunistas, anarquistas, democratas de várias correntes, operários, gente do povo), que chegaram a pagar com a vida as suas convicções democráticas ou revolucionárias. A mistificação chegou ao ponto de um comentador (1) quase reduzir a luta antifascista à pessoa de Soares: “...era Mário Soares quem se erguia, nos círculos da oposição democrática” (subtil restrição, esta da oposição democrática!) “tentando que o fio da esperança no futuro não se quebrasse no longo labirinto da ditadura.” Belo.
Ninguém na esquerda retira a Soares o seu papel de anti-salazarista e anti-marcelista, mas é de toda a conveniência manter a noção das proporções para não se cair em ridículo.

A coerência que, retrospectivamente, pode atribuir-se a Soares foi a de ter pugnado desde sempre pela instauração de um regime democrático-burguês como o que hoje existe. Soares foi por isso antifascista quando precisou de contar com a força popular de oposição à ditadura a fim de derrubar o regime — porque a burguesia portuguesa de então, como classe, não mostrava nem força nem convicção para o fazer por si. Ou quando, nos meses imediatos ao golpe de estado de 74, a onda popular lhe era útil para derrotar definitivamente a resistência dos fascistas.
Mas logo que essa fase passou, Soares virou o fogo contra a onda popular, de sentido revolucionário, que então se afirmava. Depois de passar pela barricada antifascista onde se confundia com o povo, emergiu na barricada do capital ombro-a-ombro com toda a direita. Foi esse “o PS do sr. dr. Mário Soares” que a direita, muito justamente, invocou para acusar António Costa, há pouco mais de um ano, de renegar a história do partido.

Quer-se fazer esquecer que, a par de um antifascismo burguês — que ambicionava libertar-se das peias salazaristas para dar curso a um poder burguês moderno —, existiu um antifascismo popular, potencialmente revolucionário, que tinha nas estruturas do poder capitalista o seu alvo e visava com isso toda a burguesia.
Foi este que emergiu, espontânea e confusamente, depois do golpe de estado dos capitães, por uns breves 19 meses. Foi este que arrepiou toda a burguesia e levou Soares a revelar-se e a tornar-se o líder efectivo da direita portuguesa, combatendo com todo o denodo e convicção aquilo a que o poder de hoje chama “deriva totalitarista”. Verdadeiramente, é por este serviço que a burguesia portuguesa presta homenagem a Soares e não pelo seu antifascismo.

Esta escolha de campo evidenciada em 75 foi natural e sem problemas em Mário Soares. Estará aí a constância que lhe atribuem. Mas que não se mascare sob cognomes de circunstância, para consumo popular, a natureza de classe da acção de Soares.
Ele foi na verdade o exemplo do político oportunista, no sentido original do termo: o político que aposta na oportunidade.
O anti-salazarista nunca distraiu o burguês vigilante contra o antifascismo popular e o comunismo. O ministro encarregue da descolonização (pois que remédio...) veste a mesma pele do adepto de Savimbi, apoiado na África do Sul racista e no imperialismo norte-americano. O dirigente socialista coexistiu com o primeiro-ministro que manda o socialismo às urtigas (negando sempre, peremptório, que o esteja “a pôr na gaveta”!). A retórica sobre uma “sociedade sem classes” não o impediu de promover a recuperação capitalista, na pessoa dos próprios capitalistas e agrários de antanho. Reclamar-se de esquerda nunca foi obstáculo para buscar aliados à direita sempre que precisou de apoios parlamentares.

Por vezes, as reais convicções de Soares acerca da liberdade e da defesa dos interesses do povo revelam-se nas suas próprias palavras. Em entrevistas dadas nos últimos anos, recordando o golpe de 25 de Novembro de 75, disse sem rebuço (talvez já com o despudor dos 90 anos) que “se os comunistas tivessem tomado a comuna de Lisboa, nós bombardeávamos Lisboa”. E descreveu com gáudio, 40 anos depois!, os apoios (inclusive militares e logísticos) que foram prestados ao golpe da direita pelos EUA, o Reino Unido, a Alemanha, etc., como um ponto alto do seu currículo. (2)
Como é fácil de ver, os “comunistas” e a “comuna de Lisboa” eram, em 75, os sectores populares e operários mais à esquerda, que queriam levar mais longe a transformação do país. Isto mostra bem o extremo que Soares esteve disposto a atingir para esmagar (à bomba, se preciso fosse) as veleidades da população mais lúcida e radical e instaurar a ordem novembrista.

A este regime chamava ele, e toda a burguesia hoje, uma democracia “moderna”, “europeia”. Ela aí está de facto: abstenção maciça, descrédito irremediável dos dirigentes políticos e das instituições, corrupção sem limites, enriquecimento sem freio, degradação da condição social do povo.
O porquê não é difícil de entender: o poder de decidir democraticamente (mesmo com todas as limitações de então) foi experimentado pelas massas populares no breve ano e meio de 74-75; o seu resultado prático foi visto nos plenários, nas ocupações de casas e campos, na participação sindical, no esboço de controlo sobre as empresas. Milhares de pessoas participaram empenhada e activamente nestes movimentos, e viram, em consequência disso mesmo, as suas condições de vida e a sua posição social melhoradas. O reverso do que hoje acontece.
Foi esse poder efectivo de intervir na vida colectiva que a “democracia representativa”, tão celebrada como supra-sumo da vida social “moderna”, retirou às massas trabalhadoras. O poder passou, sem partilha, para as mãos de uma clique burguesa servida por um aparelho de Estado omnipresente e obediente. Obviamente, as massas populares viram costas a esta democracia porque ela não as representa e não serve os seus interesses. O seu a seu dono.

(1) Soromenho-Marques, Diário de Notícias (11.1.17)
(2) Declarações à Agência Brasil (25.4.2013) e outros meios de comunicação

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