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Diário Liberdade
Domingo, 22 Janeiro 2017 15:38 Última modificação em Terça, 31 Janeiro 2017 00:18

Kollontai em Lisboa: evocações para uma subjetividade comunista desejante

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País: Portugal / Cultura/Música / Fonte: Diário Liberdade

[Leandro Módolo P.] Acabei de assistir a uma peça de teatro do diretor argentino Mariano Pensotti com o título “Arde Brillante en los bosques de la noche”, como diz no site: a peça “revisita a figura de Alexandra Kollontai, revolucionária soviética e feminista. Partindo das suas preocupações em torno das políticas do corpo, da sexualidade e da identidade feminina, vai à procura das ressonâncias da Revolução Russa na América Latina de hoje.” Alguns apressados, como eu, suporiam Kollontai andando pelas ruas das sociedades contemporâneas em rodopios de satisfações passageiras num bamboleio de tristezas e angústias, em outras palavras, vendo suas bandeiras da nova moral sexual antipatriarcal rodando nas timelines das organizações feministas e dos perfis esquerdistas, mas escondida da sociedade pelos algoritmos da vida real, esta por sinal, ainda fundamentalmente misógina e machista. Contudo, o que se vê na peça de Pensotti, encenada por Susana Pampín, Laura López Moyano, Inés Efrón, Esteban Bigliardi e Patricio Aramburu, foge tanto ao que se pode supor quanto ao que se tradicionalizou nas abordagens estéticas da esquerda socialista.

Muitas vezes se escuta que a esquerda deve reeducar esteticamente aqueles formatados em massa pelo colorido dos merchandisings, pelas melodias dos jingles, pelo belo da Moda, pela excitação dos trailers, pelos risos fáceis dos youtubers, pelas performances dos Vevos... Reeducar para construir uma nova subjetividade, se não propriamente da “Nova mulher” de Kollontai – pois esta carece de transformações mais profundas –, ao menos de uma subjetividade desejosa do mundo que Kollontai sonhou, o que está longe de ser fácil e certo de ser imprescindível. Se de fato esta é uma tarefa, então a questão é como fazê-la?

Duas lições de dois dos maiores pensadores marxistas podem nos ajudar. A primeira é de Gyorgy Lukács. Para o filósofo “adversário do estalinismo” [1], a Arte pode também ser compreendida como uma forma de conhecimento. Um conhecimento mediado intensivamente pelas afecções e realizado na síntese de uma nova afetividade concebida intelectualmente pela consciência de si no mundo – por isso, as boas gargalhadas ou longos choros nos deixam afetados por dias após uma catarse, depois de nos suspendermos pela arte somos intelectual e afetivamente novos seres, seres mais humanizados diria ele. A outra é do próprio fundador da filosofia comunista, Karl Marx. O “mouro” dizia que não basta que o sujeito ao conhecer se embrenhe na descoberta do real, é preciso que o próprio objeto real esteja maduro para ser apreendido em sua substância. Sendo assim, brincando podemos dizer que a arte é um grande professora para uma nova subjetividade, sobretudo, se a aula já estiver na hora de começar.

Aquém de uma reflexão estética – para a qual me faltaria competência – não temo em dizer que “Arde Brillante” é capaz de atingir o que as duas lições nos ensinou. Para isso, Pensotti assume uma intenção particular: ressignificar o passado com os olhos do presente, não o contrário. Não se trata de olhar o presente com as cores e as luzes à querosene, com a velocidade da comunicação por cartas, com a espacialidade das viagens de trem, com a intuitividade das antigas máquinas... com as formas da Rússia de Kollontai. Todavia, ainda assim, se trata de recordar o passado que insiste em atordoar o presente. Orientado pelas propostas formais das vanguardas russas do século XX ele empreende um resgate dos ideais nada antigos da feminista e valendo-se das interpelações estéticas próprias da vida atual desfere uma sarcástica crítica à sociedade contemporânea.

Não vemos a revolucionária russa a andar pela Argentina de Pensotti, tão pouco nas ruas da antiga Moscou, ao contrário, vemos, com marionetes, com o teatro e com o filme que se metamorfoseiam um no outro, um grupo de mulheres em família e com a consciência política das bandeiras comunistas do passado sofrendo o machismo da Argentina de 2017. Forma teatral encarnada nas personagens principais: a mãe e professora marxista que admite, sem satisfação, levar a vida de modo mais convencional do aquela que ensina em sala. A filha mais velha, uma ex-guerrilheira na Colômbia que retorna à cidade globalizada onde a Revolução tornou-se mais uma identidade comercial. E a filha mais nova, uma promissora jornalista que vive na crise por ter que comedir suas opiniões ideológicas ao vivo. Recheado de um inteligente – e às vezes escrachado – humor ao lidar com a cisão burguesa da vida pública e privada, com a hipocrisia das camadas médias letradas, com as crises geracionais da esquerda em transformação, com os pudores dos setores socialistas tradicionais etc., “Arde Brillante” se vale de diversos recursos visuais popularizados pelas art media das redes sociais para evocar do expectador que as bandeiras da opressão de gênero e da exploração de classe são bandeiras para uma mesma mão levantar, ou melhor, para uma mesma mão desejar levantar.

No fim, o tema é o feminismo de Kollontai nos nossos dias, mas o conhecimento artístico é de um desejo amadurecido pela história. Se as últimas décadas foi um relativo avançar das bandeiras – denominadas por alguns como “esquerda pós-moderna” – como a liberdade do uso do corpo, do sexo e da identidade de gênero, ao preço danoso do distanciamento do calendário das lutas de classes, não menos verdadeira tem sido as dificuldades com que os setores classistas caminham ao terem que lidar, nas assembleias, nas mídias, nas ruas etc., com as prioridades dos novos sujeitos políticos em luta.

Hoje, contudo, Arde Brillante nos sugere que os giros que a história empreende talvez estejam lançando-nos em um cenário onde, de um lado, os setores classistas estão cada vez mais cientes das demandas culturais secundarizadas frente às “leis férreas da economia”, cientes do poder que se instaura micrologicamente nos corpos e de que nossas grandes narrativas estão permeadas por eurocentrismos, por sexismos, por machismo, por heteronormatividades. Do outro lado, os setores da “esquerda pós-moderna” além de quererem gozar com liberdade e dizer não às opressões, agora estão presenciando na pele o fim das seguridades sociais, a precarização da vida laboral, o recrudescimento da insegurança e dos conflitos armados, aprendendo, em suma, que o corpo só pode ser erótico se ele não for famélico. Ou seja, passado a derrota dos projetos da esquerda socialista e o deslumbre anti-marxista da esquerda dita “pós-moderna”, a narrativa da peça argentina nos indica que estão abertas historicamente as possibilidades de uma síntese onde as demandas transversais às classes devem ser incorporadas não como um plus, mas como algo constitutivo das estruturas capitalistas a serem derrubadas; e que a luta política identitária desarticulada de um projeto de classe encontra seus limites no reformismo, por consequente, na reposição constante da estrutura patriarcal.

Nesse sentido, ao desferir golpes críticos aos dois flancos da esquerda atual, um otimismo se apresenta ao evocar uma nova subjetividade, senão intelectualmente consciente de si no mundo, desejosa de que patriarcado e o machismo sigam para o lixo da história ao lado do capitalismo e sua natureza exploratória. Sonhos que Alexandra Kollontai, pioneira em muitas das bandeiras feministas, nunca abandonou ao empenhar-se na luta contra as classes dominantes. Hoje, portanto, na segunda década do século XXI, talvez a esquerda já possa definitivamente se olhar no espelho e se (re)conhecer criticamente para provocar em todos o desejo de transformações combinadas: nem o macho e nem o patrão, a luta é pela emancipação. E é isso que Pensotti ao lado de seus belos atores nos convida.

[1] Ler a decisiva análise de Nicola Tertulian.Disponível em http://www.verinotio.org/conteudo/0.65943372031621.pdf

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