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Diário Liberdade
Terça, 06 Junho 2017 17:50

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 8

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

A luz do dia nos deixava descobertos e não podíamos seguir no caminho limpo, sem espinheiros, e assim tivemos que avançar entre cactos e galhos que nos cravaram na pele suas agulhas. Eu usava o gorro e as luvas de montanhista e isso ajudou a diminuir a quantidade de espinhos que entravam na minha pele porque a maioria parava nesses itens. Aos demais, começava a escorrer lentamente o sangue das feridas causadas pelos espetos e grandes espinhos dos cactos adultos.


Capítulo 1 | Capítulo 2 | Capítulo 3 | Capítulo 4 | Capítulo 5 | Capítulo 6 | Capítulo 7

Conseguimos nos reunir à sombra de um cacto rodeado de galhos secos. Ali deitamos no chão e começamos a contar para assegurar que todos do grupo estavam ali. A poucos metros de distância se via a forma em que avançavam outros grupos, de organizações distintas.

A noite caía e a angústia era que tínhamos de nos afastar o mais rápido possível da linha fronteiriça e que não amanhecêssemos na área de fogo. O barulho das balas roçando ramos de cactos não nos permitia pensar com clareza e a decisão foi instintiva: afastar-se ainda que nos separássemos do caminho conhecido pelo coyote, e assim foi como começamos a nos perder naquele cemitério sem túmulos onde as cruzes e epitáfios são mero mito.

Talvez uns três quilômetros levávamos percorridos quando sofremos nova emboscada da polícia migratória e nessa ocasião as motocicletas eram mais numerosas. Vi de perto os cães e os helicópteros que apareceram em minutos com seus focos e auto-falantes. Nosso grupo era parte da multidão que também tratava de escapar. Realmente não estávamos sozinhos e a saída do deserto perto da cidade mais próxima do Arizona estava no infinito.

Nessa ocasião não só era a Patrulha Fronteiriça que nos encurralou, mas também havia homens com vestimentas civis, chamados de “os particulares”, com armas de franco-atirador. Disparavam pela esquerda e pela direita, festejando a noite de caça. Seis pessoas de outro grupo buscaram o mesmo cacto em que eu estava e ainda que lhes tenha dito para deitarem, permaneceram agachadas com a desculpa de que não queriam encher novamente o corpo com os espinhos e galhos. Lhes pedi que deitassem umas três vezes e então optei por me afastar deles, quando comecei a me arrastar me disseram: “tonta, fique aqui”, mas minha necessidade é o meu norte e o meu sul. Entre essas mesmas pontas e os ramos secos dos cactos, as espinhas atravessavam a tela impermeável das minhas calcas e as senti como alfinetes rasgando minha pele. Minutos depois, balas perdidas impactaram no rosto de um deles e a outro atravessaram o peito. Devido aos gritos de dor imediatamente chegaram os particulares e arremataram os seis. Sacaram manadas de cães que tinham em veículos de dupla tração e estes começaram a devorar os corpos. Eu havia me afastado o suficiente e estava escondida em uma vala coberta por matagais.

Realmente não há quem acuse a Patrulha Fronteiriça. Ainda que comprovado pelos testemunhos de centenas de migrantes de que não seguem os protocolos para deter indocumentados e respeitar seus direitos humanos. Nas cortes federais defendem-se dizendo que quem abre fogo primeiro são os indocumentados que sempre e sem o beneficio da dúvida são delinqüentes que buscam matá-los. A palavra de uma pessoa sem documentos não vale nada.

Esperamos uns quarenta minutos para que fossem embora. Levaram consigo dezenas de indocumentados e risadas eram escutadas em festejos de quem acabou de ter uma excelente caçada.

Saímos lentamente do matagal. O cansaço e o que havíamos acabado de passar começava a nos baixar o moral. As queixas se fizeram mais notáveis e vários optaram por desistir e entregar-se às autoridades antes de morrer com um balaço na têmpora ou de fome. O coyote perdeu totalmente o controle da situação, era um menino que começava a ser devorado pelo medo. Tínhamos de reagir nós que conversávamos com a cabeça um pouco mais fria e só éramos eu e o homem com a bíblia, o restante estava em total comoção.

Os golpes emocionais me pegam dias depois de ocorrido um acontecimento significativo. Continuo no automático com a cabeça fria e isso faz com que as pessoas que não me conhecem profundamente muitas vezes me acusem de ser insensível porque enquanto elas se desplumam eu permaneço com a sobriedade de quem tem tudo sob controle, é depois quando me despedaço e caio no fundo do abismo. Essa condição me ajudou a pensar em como preservar a vida o maior tempo possível. Estes capítulos de minha travessia do deserto não são de maneira alguma relatos fictícios, é o que vi e vivi, e levei dez anos para poder escrever tudo porque finalmente a serenidade chegou à minha alma. Porque consegui extrair o veneno que não me deixava respirar. Porque é necessário que o que se vive na fronteira saia da cela de uma lembrança amarga, daquelas que levamos eternamente em nossa memória. E não. Que a mim não digam: “pobrezinha da moça por ter vivido tudo isso”, que me olhem de frente e direto nos olhos ou que melhor se apartem do meu caminho. Lástimas e misericórdias não são para pessoas cabais.

Esta série de relatos é parte de minhas memórias, meus diários guardam capítulos de minha vida neste desfilar de catarses de uma migrante indocumentada com ofício de mucama. E não, não há que alcançar a fama, o êxito e o triunfo diante dos olhos da sociedade que aplaude a quem está no alto do apogeu. Para escrever uma memória na invisibilidade só é necessário ter sido presa e isso não dá nem a fala, nem o êxito, nem o que aparentemente é o triunfo. Essa audácia só é privilégio de quem nasce com sorte; como as bestas na minha terra natal Comapa.

Nos afastamos o máximo que pudemos do caminho real e dos atalhos para tentarmos de novo no deserto intransitável e novamente o silêncio se apropriou da madrugada. Nos era impossível sair da área onde a Patrulha Fronteiriça e homens vestidos de particular nos rastreavam. O homem com a bíblia em mãos me ajudava a imobilizar a mulher com o tornozelo machucado. Enquanto o resto do grupo caminhava com a cabeça baixa em total redenção e certos que tínhamos nos livrado da La Migra, meu instinto rústico aguçou-se e prestei atenção até ao menor ruído natural de uma noite no deserto. Eu podia respirar e sentir no ar seco que a La Migra nos preparava uma nova emboscada. A luz da lua me deixava ver os altos morros na distância e conversei com o homem da bíblia que essa seria nossa rota de fuga e tínhamos que chegar a eles se as circunstâncias piorassem. Idéia que guardamos a moça lesionada, ele e eu – e só a poríamos em prática se fosse requerido pela situação. Havia morros no deserto e mais tarde comprovei que também havia barrancos.

Descansamos cinco minutos em uma quebrada seca que tinha forma de vala e que nos cobria muito bem se permanecíamos sentados. Só contávamos com um galão de água porque nas emboscadas anteriores deixaram todos os outros galões jogados no chão. Eu tinha dois litros de soro, a maçã e o pacote de biscoitos. Acomodei a venda no tornozelo da mulher lesionada e continuamos avançando. O coyote estava totalmente desnorteado, não tinha mais a mínima idéia de onde nos encontrávamos, se íamos avançando no sentido da estrada mais próxima ou se estávamos de regresso a Sonora. E se ele andava nessas, imagine nós – estávamos ainda mais perdidos.

Havíamos nos afastado uma hora do caminho da quebrada quando novamente sucedeu a emboscada que eu havia respirado no ar nesta ocasião novamente minha necessidade nos salvou a vida. Maior quantidade de motocicletas, os particulares que andavam a cavalo e as pickups com suas jaulas haviam interceptado o grupo que nos levava escassos trezentos metros de distância. Novamente escutamos os disparos e os gritos que suplicam piedade. Começamos a correr e topamos com ramos de cactos que nos golpeavam o rosto e deixavam suas pontas de espinho, como alfinetes, em olhos, lábios e corpo.

Eu as sentia quentes no meu rosto coberto pelo gorro de montanhista.

Em instantes nos cercaram e pedi ao grupo que saltássemos no barranco que tínhamos a cinqüenta metros de distância, ninguém queria fazer isso mas eu insisti, correndo entre as rajadas de balas e os homens a cavalo que nos seguiam e estavam quase nos emboscando. Lhes gritei que era mil vezes melhor morrer em um barranco do que nos deixarmos emboscar porque já sabíamos o que nos esperava. O homem da bíblia, a jovem lesionada e eu saltamos em queda livre na profundidade do barranco e atrás vinham os outros; começamos a rodar na ravina, nossos corpos chocavam-se com cactos e ramos secos, com pedras de rio e corpos de outros migrantes em decomposição.

Chegamos ao fundo e ao tentar me mexer me dei conta de que meu joelho direito estava lesionado.

Do alto, os policiais e os particulares nos disparavam balas e entre as pedras nos cobrimos até que nos deram por mortos. Ninguém do grupo foi ferido. E apesar do frio Gélido do deserto suávamos muito. Não me detive a pensar no meu joelho nesse momento porque a urgência era subir e avançar antes que amanhecesse e se interassem de que estávamos vivos. Não havia tempo para se queixar de pedras e galhos entrando na pele das nossas mãos, escalávamos como podíamos ou nos matariam ao amanhecer. Decidimos subir e pôr o peito à esperança de sobreviver esta travessia. Mas uma última emboscada ainda nos esperava.

Glossário:

Coyote – pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

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