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Diário Liberdade
Terça, 21 Mai 2019 12:56 Última modificação em Terça, 21 Mai 2019 13:08

Lucas, Abril imigrou com ele

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António Santos

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Há histórias que contadas no Primeiro de Maio, ninguém acredita que já foi 25 de Abril: um patrão faz um contrato a um imigrante; explora-o da forma mais brutal durante um ano; quando esse trabalhador faz greve, o patrão chama a polícia e denuncia a existência de um «imigrante ilegal» que é lestamente detido.


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O Manifesto74 conversou com Lucas Nascimento, o protagonista de uma história sobre dignidade e coragem.

Lucas chegou legalmente a Portugal, há quase dois anos, então com um visto de turismo. «Comecei a trabalhar no restaurante Miradouro Ignez em fevereiro de 2018, então eu estava legal», explicou ao Manifesto74. «Só me faltava o número da segurança social para poder fazer descontos, mas para ter esse número é preciso que a empresa passe uma declaração indicando que o funcionário está a trabalhar e tem meios de ficar no país».

Mas a desejada regularização não fazia parte dos planos do patrão que responde pelo nome de Mário Gregório: «Ficou a me enrolar por muitos meses, até que finalmente fiquei ilegal no país. Não existe problema na lei: existem patrões que querem se aproveitar da fragilidade da nossa situação para tirar proveito e fugir a impostos», sentenciou.

O «proveito» a que Lucas se refere é um extenso rol de crimes e imoralidades próprias de um traficante de escravos do século XXI: «assédio moral, abuso de autoridade, negação de direitos básicos como subsídio de refeição, horas extras e nocturnas não pagas, horários sempre a mudar e desrespeito pelos prazos para adaptação».

Práticas e métodos que, garante Lucas, mostram como os trabalhadores portugueses estão mais desprotegidos que os brasileiros. «Eu nunca tinha trabalhado aos domingos e nos feriados sempre recebi a dobrar... Já aqui em Portugal é outra história... horários repartidos, o povo trabalha de domingo a domingo, aos feriados e noite dentro. Muitos trabalhadores não têm horários fixos: vivem à merce da vontade do patrão e das horas que ele quer que sejam feitas».

Durante anos, a estratégia de Mário Gregório para explorar ao máximo os trabalhadores do Miradouro Ignez assentou no medo e na divisão dos trabalhadores. «Quando os trabalhadores estão unidos, um patrão desonesto não tem hipótese. Mas com a casa dividida e brigas entre os funcionários, é fácil fazer a vida negra a quem ou mesmo despedir quem faz frente ao patrão». O medo, porém, provar-se-ia ineficaz com Lucas Nascimento.

«Venho de uma família desestruturada e sempre tive muitos conflitos em casa por conta dos vícios do meu pai. Tive de aprender a protestar e a combater desde pequenino. Como minha mãe e meus irmãos não conseguiam fazer-lhe frente, tinha de ser eu. Aos quinze anos consegui expulsá-lo de casa de uma vez por todas, mas esta postura, de não me render perante a injustiça, ficou para sempre».
Portugueses e imigrantes, unidos
A luta dos trabalhadores começou onde normalmente teria acabado: uma injustiça individual, contra uma trabalhadora que, sozinha nada podia fazer, «uma colega do Monte Ignez, que é muito boa pessoa e uma excelente profissional», faz questão de sublinhar. «No seu primeiro trabalho em toda a vida, se deparou com uma patroa que além de lhe pagar miseravelmente, ficou a dever-lhe meses salário. A colega recorreu a todas as instituições do Estado, mas acabou por não conseguir resolver nada. A coitada, já em desespero, foi parar ao Miradouro Ignez em 2017, mas o novo patrão mostrou-se logo tão ou mais desonesto que a anterior: não lhe pagava subsídios, feriados, horas extras e estava constantemente a mudar o horário de trabalho, não ligando se ela tem vida pessoal ou não... Perante essa falta de consideração por parte da entidade empregadora, fomos atrás dos organismos responsáveis do Estado, mas obtivemos sempre respostas do tipo “não há nada a fazer”. Então embarquei nessa luta, em conjunto com meus colegas para mostrar para ela que temos o direito de ter um trabalho onde somos respeitados pelo patrão, que o patrão só tem autoridade até onde a lei permite, e que deve começar por nós a reivindicação de direitos».

À medida que o embrião da luta gestava no restaurante, as velhas «brigas» entre trabalhadores davam lugar à solidariedade. Os portugueses aperceberam-se de que as ilegalidades cometidas contra os imigrantes serviam apenas para pressionar os seus próprios direitos. Estendiam-se pontes entre as exigências de cada um, cada qual descobria no outro a força que sozinho não tinha e, acima de tudo o resto, descobriram que a luta era o único caminho.

«Após ver que nos órgãos responsáveis as chances de mudar algo era quase nula, uma vez que a ACT já tinha autuado o local e nada tinha mudado, tentámos o sindicato, até porque nós não sabíamos quais eram nossos direitos como funcionários da empresa. Nessa altura estávamos muito desgastados e já sem esperança. Lá conhecemos a Albertina que nos recebeu com muita alegria, nos explicou muita coisa, e numa rápida votação, meus colegas me escolheram como delegado do Sindicato da Hotelaria do Norte (SHN).»

Seria o início de uma batalha heroica entre a dignidade e a prepotência, entre a lei e o dinheiro, entre explorados e exploradores.

«Após a chegada da carta do sindicato, a meio de Dezembro, tentaram me comprar. Como eu ignorei, tentaram me ameaçar com despedimento. Então, começaram a mudar o horário dos colegas sem dar prazo de adaptação e a marcar falta às pessoas que não aceitassem o novo horário. Na hora de pagar o salário de Dezembro, o patrão decidiu me pagar apenas o que ele achou que eu deveria receber, mesmo sabendo que eu fiz mais horas que todos na casa, quase todas elas noturnas. A outras duas colegas portuguesas que então estavam de férias, o patrão fez o mesmo e também só pagou o que quis. Quando eu lhe liguei questionando sobre o que tinha acontecido a resposta foi: “Tu não és meu funcionário. És apenas um prestador de serviços e o que recebeste está ótimo. Não entres mais ao serviço que não te quero mais aqui!” Eu respondi-lhe que se ele se quisesse livrar de mim tinha de me fazer chegar uma carta de demissão válida e que no dia seguinte eu estaria ao serviço. Daí para a frente o sindicato decidiu agendar reuniões no Ministério do Trabalho para ver se era possível algum diálogo com o homem».

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Sobre o SHN, que desta forma entrou para a liça, Lucas não poupa elogios: «Tem feito um trabalho incrível, nunca fui tão acolhido e defendido em toda a vida. O Sr. Figueiredo e o Sr. Nuno são homens exepcionais e altruístas», diz dos dirigentes sindicais com que tem contactado, «a luta deles é mesmo a luta de todos que trabalham na restauração».

Perante a absoluta intransigência do patrão, os trabalhadores do Miradouro Ignez avançaram para uma greve de dois dias, a 1 e 2 de Abril, exigindo o cumprimento da lei e o respeito pelos seus direitos. A greve foi um rotundo sucesso, mas a resposta do patrão surgiria depois, quando Mário Gregório despediria ilegalmente Lucas e outros dois trabalhadores imigrantes, chamando a polícia para o deter quando se apresentou ao trabalho.

A PSP confirmou à Lusa a detenção, «após denúncia de que um cidadão estrangeiro podia estar em situação de permanência ilegal no país».

Tanto o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) como a Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) vieram a terreiro desmentir Mário Gregório, que invocara falsamente estas siglas para justificar o despedimento ilegal. Mais ainda, o SEF fez saber que os três trabalhadores imigrantes estão em situação legal a ACT acrescentou que os três estão autorizados a trabalhar em Portugal. E, apesar de tudo isto, borrifando-se para a lei, Mário Gregório mantém o despedimento ilegal.
"Tu não és meu funcionário. És apenas um prestador de serviços e o que recebeste está ótimo. Não entres mais ao serviço que não te quero mais aqui!”
Lucas mantém a vontade de regressar ao seu local de trabalho, mas com mudanças. «Ele tem de perceber que não pode continuar tratar os trabalhadores desta forma» e espera que essas mudanças podem inspirar outros trabalhadores, «o meu caso e dos meus colegas é o caso da maioria dos portugueses que trabalham na área da restauração. Os trabalhadores precisam acordar e lutar contra as injustiças que esse setor promove», sublinha.

A um oceano de distância, Lucas não esconde «uma tristeza imensa» pela situação política do seu país natal e aponta o dedo à reforma laboral de Bolsonaro que «não está a gerar mais empregos ou riqueza, mas sim mais desigualdades», acusa. «O homem que eu via como uma piada está no Poder e aquele que eu admirava está preso. Não sei se sou eu que estou errado ou se é o mundo que está ao contrário».

Não, Lucas Nascimento nunca esteve ilegal em Portugal. Esta terra e a sua cidadania pertencem a quem nela vive e trabalha todos os dias. Já patrões como o dono do Miradouro Ignez, Mário Gregório, estão, eles sim, ilegais, por violar sistematicamente a lei do trabalho, assediar, ameaçar e aterrorizar os trabalhadores mais vulneráveis e explorar desumanamente os que vivem do seu próprio suor. Podíamos começar por denunciar Mário Gregório ao SEF. Pode ser que o deportem para o séc. XIX.

Fonte: Manifesto74

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