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Diário Liberdade
Terça, 20 Junho 2017 17:02 Última modificação em Quarta, 21 Junho 2017 03:07

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 9

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

Conseguimos subir o barranco e nos afastamos do lugar. Pensamos que o tormento das emboscadas havia ficado para trás. A fronteira não é como contam por aí e por isso perdem-se tantas vidas em tentativas vãs de atravessá-la aos Estados Unidos. Não se ouvem historias de policiais que atiram em indocumentados quando na verdade essa é uma realidade diária. Mas quem os acusaria? Pior ainda, quem acreditaria na palavra de um indocumentado? Ninguém. Nós não valemos como seres humanos dentro desta nação. Com sorte, seremos mão-de-obra barata com a qual os anglo-saxões se beneficiam e nada mais.


Capítulo 1 | Capítulo 2 | Capítulo 3 | Capítulo 4 | Capítulo 5 | Capítulo 6 | Capítulo 7 | Capítulo 8

Tivemos êxito ao avançar mais alguns quilômetros e nos encontramos novamente com grupos que haviam conseguido escapar das caçadas. Estávamos perto do morro que tínhamos visto e a idéia de subir nele me volteava a cabeça, mas o estado físico do grupo o impedia. Eu havia escalado vulcões na Guatemala e treinado em montanhas devido a minha profissão de árbitra de futebol. Esse morro imponente me chamava. Foi instintivo, desde que o vi pela primeira vez soube que seria nossa rota de fuga.

Também a forma de cair no vazio para amortecer os golpes eu aprendi na infância quando íamos com meus amigos de expedição às aldeias vizinhas. Eram quedas atrás de quedas entre desfiladeiros e barrancos; o mais importante em um descenso dessa magnitude é tomar imediatamente a posição fetal e com isso cobrir as costelas para proteger os órgãos internos e com as mãos tapar o rosto. Também pode ser a outra estratégia; a de correr seguindo as falhas da ladeira, mas isto não ajuda quando o terreno esta cheio de obstáculos como os cactos.

Caminhávamos lentamente porque já não havia ímpeto em acelerar a retirada, o ânimo do grupo estava no chão e devido a essa lentidão não pudemos nos salvar da emboscada policial montada adiante. Motoristas, jaulas, cães e toda sorte de aparato policial nos esperavam para acender suas luzes. Enormes focos que impedem a visibilidade, são segundos perdidos para nós e ganhos para eles, mas como não era a primeira vez, novamente corremos, e outra vez vieram as balas.

Os homens da particular também vieram e com eles mais violações. A jovem lesionada já não podia caminhar. Estava caída e com o tornozelo ainda mais machucado. A dor não a permitia prosseguir, então eu e o homem da bíblia a carregamos. Um tempo ela subia nas minhas costas, outro tempo na dele. Ninguém mais quis ajudar, diziam que estavam acabados e não tinham forças para ajudar os outros.

O coyote se deteve e disse que o melhor seria se nos entregássemos antes de que nos matassem. Sua palavra desmoronou o moral do grupo e uma cólera vinda do meu caráter demoníaco me fez ferver o sangue. Começou a caminhar na direção da polícia e eu corri para pará-lo, agarrei-o pelo pescoço e no contrapé o joguei no chão. Voltei a levantá-lo e o segurei pelo colarinho da camisa topando-o com o meu peito de modo que a escassos centímetros seu rosto ficou do meu. Minha reação o imobilizou, não esperava algo assim de uma mulher. Tirei o gorro e o encarei diretamente nos olhos e lhe disse: “Tão macho para ser coyote, assim demonstra que é um homenzinho! Você vem com a gente ou serei eu que vou te arrebentar a cara com porrada! Você não vai nos deixar aqui largados no meio do nada!” E para eu bater nele era a coisa mais fácil do mundo, cresci rodeada de homens em brigas de rua, essa reação era parte do meu habitat natural. Começou a sair lentamente a Ilka da vila.

O tom da minha voz e minha irritação começara a surtir efeito e desde esse instante as coisas mudaram. Apontei para o morro e lhes disse que era nossa rota de fuga e tínhamos de subir lá  ainda que com isso podíamos nos perder completamente no deserto ou morrer tentando. Era demasiadamente íngreme mas tínhamos de fazer isso logo pois iria amanhecer e ficaríamos visíveis para a La Migra. O grupo de mulheres imediatamente veio comigo, eram os homens que estavam indecisos sobre seguir uma mulher. Mas o homem da bíblia em mãos os convenceu quando se uniu ao grupo e começamos a avançar. Isto foi questão de segundos enquanto a La Migra controlava migrantes de outros grupos que haviam sido capturados.

Antes de escalar o morro procuramos galhos secos que servissem como apoio, encontramos um em forma de forquilha que serviu de muleta para a menina com o tornozelo lesionado. Nos abraçamos todos porque a subida não seria fácil e ao menor resvalão a morte era certa. Não havia trilha a seguir, nós que a abrimos.

O coyote estava bravo comigo, era um menino e entendeu a minha reação, transformou-se em mais um migrante. O homem da bíblia fez uma oração porque era nossa despedida, realmente a nossa última tentativa de nos salvar das balas e dos golpes. As lágrimas tardaram a aparecer, pelo menos as minhas. Três homens de outro grupo tinham se unido a nós na última cartada também deles, porque no grupo que iam haviam pego todos, menos os dois. Foram bem recebidos e rapidamente formaram parte do time.

Agarrando-nos aos ramos dos cactos e às pedras começamos a subir. De longe víamos as luzes das motocicletas e camionetes que se moviam circularmente. Os lamentos eram parte do eco da madrugada e a alvorada começou a emergir com suas cores flor de fogo, até que o sol alaranjado vivo nos deu bom dia. Íamos na metade do morro. A deslumbrante beleza daquele amanhecer visto da vertente de um morro de um deserto foi uma das experiências mais gratas da minha vida. Lembrar disto agora enche meus olhos de lágrimas, lágrimas de gratidão. Sou uma pessoa que vive intensamente os instantes. Assim as circunstâncias podem até atiçarem as sombras, afinal, não é uma premissa que também no sinistro haja encanto caso saiba-se ver com os olhos do coração? Aquele amanhecer foi o ressurgir, o respirar e o comprovar que havíamos sobrevivido ao fatal obscuro.

Chegamos ao cume e vimos daquela altura a lindeza daquele deserto generoso que nos tinha permitido fugir da morte. Decidimos ficar ali descansando até o meio dia. O frio da manhã deu lugar a um solzinho e à brisa rala e quente que queimava o nariz quando se respirava. Tiramos os sapatos e deitamos sobre o chão frio que entibiava lentamente. Eu tinha perdido o gorro e as luvas na subida e todos puderam ver meu rosto moreno; xinca e garífuna, que ali tomava a forma de um autêntico veracruzano.

A cada tanto passavam helicópteros e aviõezinhos sobrevoando a área tão perto de nós que o vento e o pó formavam pequenos redemoinhos que nos enchiam de brisa quente. Às duas da tarde começamos a descer, mas pelo outro lado, para não voltarmos onde a La Migra tinha abatido a tantos indocumentados. Nesse momento meu joelho começou a inflamar e em dor comecei a chorar. Quando saí do barranco onde havíamos caído me mediquei com ungüento e isso ajudou a não sentir a dor, mas havia passado horas e o golpe começou a manifestar-se com força novamente.

Mesmo com essa lesão eu ainda estava em melhores condições que a mulher do tornozelo machucado, não tinha nenhuma dúvida que ela tinha quebrado o tornozelo mas não quis dizer nada para não deixá-la angustiada. Era impossível pra ela encostar a ponta do pé no chão, seguimos ajudando-a, eu e o homem da bíblia. O resto já estava muito mal com suas bolhas nos pés e seus estados de saúde. Todos fervíamos de febre e creio que foi devido a tantos espetos que se meteram em nossos corpos, dando como pouco uma vontade enorme de arrancar toda a pele fora.

Quando a dor ficou impossível de suportar comecei a ficar desgarrada do grupo. Realmente não queria falar com ninguém, estava muito irritada pelo golpe no meu joelho e a dor insuportável me fez morder os lábios em mais de uma ocasião. Desde que meu professor da quarta série do primário se deu conta que eu não conseguia me expressar, a não ser com golpes, me disse para cantar quando me sentisse só e com isso conheceria minha voz que era a expressão do meu ser interno, cantei toda a minha vida e nesse deserto não houve exceção; tínhamos que guardar silêncio e avançar o mais rápido que pudéssemos mas eu cantava mentalmente e isso permitia com que eu não pensasse na dor que me devotava.

Aos 19 anos tive uma lesão nos ligamentos cruzados e no menisco tão forte que se me operassem era muito provável que eu não pudesse voltar a trotar. Com os exames, o médico se deu conta que meus joelhos, por assim dizer, tinham mais idade do que eu, estavam muito desgastados e aos 19 anos pareciam os joelhos de uma mulher de 40. Tenho 34 hoje e meus joelhos parecem os de uma mulher de 60. Eles vão deteriorando a cada dia mas não me importa, nada nem ninguém me afastará da paixão da minha vida.

O médico tinha me proibido de trotar e escalar com certa velocidade, para não desgastar ainda mais os joelhos, mas eu não iria renunciar ao meu sonho de ser árbitra internacional e recém começava nessa profissão. Renunciar a isto era como me suicidar. A primeira das conseqüências veio no deserto e foi uma prova de fogo para mim.

Minha venda e tala estavam com a moça do tornozelo, a única coisa que eu tinha era o ungüento que já não fazia efeito com o nível da inflamação. Busquei um galho mais roliço para me servir de apoio porque a outra perna já começava a entrar em estado de fadiga por sustentar sozinha todo o meu peso. Descansávamos por 20 minutos a cada duas horas. A paisagem tinha suas cores moradas, vermelhas e alaranjadas. Nela, o sol ia caindo lentamente até dar lugar a noite naquele descampado, que nos iluminava com a luz da lua e seu fulgor, além das estrelas baixas que pareciam vir descansar conosco nos ramos secos dos cactos.

À meia noite deixamos de caminhar e de dois em dois nos acomodamos sobre as palhas do chão buscando os cactos mais roliços, afastando-nos uns cinqüenta metros uns dos outros para não sermos surpreendidos caso nos encontrasse a La Migra. Dessa forma, alguém se salvaria. Quatro mulheres deitaram juntas, eu estava com elas. Encontramos um cantinho ali mas não conseguíamos dormir por causa do frio e eu por causa da dor no meu joelho. A cada hora mudávamos de lugar, duas no meio e duas nas pontas, e para ter um pouco mais de calor nos abraçamos o máximo que podíamos.

Ao amanhecer foi um espetáculo sem precedentes. Uma sensação difícil de explicar. A magnitude do esplendor da natureza nos surpreende, e nos fez chorar aquela beleza toda no meio do nada. Só nos restava um litro de soro que era meu e o racionamos. Um golinho na boca da garrafa para cada duas horas de caminho, assim dava para todos. Também repartimos a maçã e os biscoitos.

Era o segundo dia no deserto e os corpos sem vida de migrantes que pereceram nessa tentativa estavam expostos. Alguns apenas em ossos e roupas, outros com dias de decomposição; homens, mulheres e crianças. Nenhum tinha pertences, em vez disso, muitos traziam perfurações de balas que podiam ter vindo da La Migra ou de gangues de delinqüentes, ou ainda dos famosos – e invisíveis para a justiça estadunidenses – homens da particular. Em que tipo de fuzuê estávamos metidos?

Glossário:

Coyote – pessoa que em troca de pagamento em dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira.

La Migra – gíria usada para definir policiais, patrulha fronteiriça e seguranças particulares, em geral, que caçam migrantes no deserto.

Xinca e garífuna são etnias indígenas presentes na Guatemala das quais a autora é descendente.

Veracruzano – pessoa nascida no estado de Veracruz, no México. (Ver capítulo 1)

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