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Diário Liberdade
Sexta, 07 Julho 2017 21:27

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 11 (último)

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

“Vamos te entregar mas se algo sai errado te matamos”, me disse o coyote apontando-me uma pistola na têmpora. 


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Estávamos na casa que servia de sede do esquema, e a organização havia pedido mais dois mil dólares para a minha irmã, além do acordado anteriormente, e ainda lhe deram apenas um dia para conseguir, caso contrário me estuprariam e matariam e ela jamais poderia encontrar meu corpo porque este seria comido por aves de rapina em algum lugar do deserto, onde seria desovado.

Não fui a única extorquida, certamente aconteceu com outros, que já estando lá na sede da organização se puseram a ligar aos familiares pedindo dois mil dólares a mais pela travessia e pela resgate. Se o migrante se opunha, pediam cinco mil. Alguns haviam combinado que a travessia toda custaria uns cinco mil dólares, outros três mil, oito, sete, dependia do Estado do México do qual provinham e nos casos internacionais, do país. Sobe o preço dependendo da distância do país, uma pessoa da Guatemala paga mais que uma mexicana, e uma salvadorenha muito mais que a guatemalteca e assim sucessivamente. Quem vem da América do Sul paga uma quantia exorbitante.

Também é a mesma organização que cruza da fronteira de Tapachula aos Estados Unidos ou apenas qualquer outra fronteira entre o México e os EUA. E se são menores de idade cobram mais caro.

Me despedi dos membros do meu grupo que cruzaram o deserto comigo e haviam ficado ali. Já havia chegado outros, todos os dias a meia noite chegavam mais e mais e todo dia de manhã saíam a entregar pessoas em troca do dinheiro que receberiam por isso. O dinheiro extra, diga-se de passagem, pois o dinheiro dos acordos iniciais são pagos antes da travessia.

A casa, quando saímos eu pude observar, já que na chegada vim deitada no chão de um sedan com o rosto pra baixo junto com outras nove mulheres. Esta casa era situada em um setor residencial com estacionamento para uns oito carros e grandes jardins que não vi de dentro porque as janelas estavam tampadas com pedaços de madeira. Dentro éramos quase cem pessoas todos os dias.

Subi no carro de dupla tração, um coyote sentou ao meu lado e colocou a pistola nas minhas costelas e assim seria durante todo o trajeto até o centro comercial onde seria feita a “entrega”.

Não poderia descer do carro até que eles tivessem o dinheiro em mãos e muito cuidado ao fazer qualquer coisa que pudesse ser considerada indevida como gritar e pedir ajuda porque para isso ia o coyote com a pistola apontada, pronto para disparar sem muita cerimônia.

Dessa forma fomos todo o caminho e depois de aproximadamente 40 minutos chegamos ao estacionamento dentro do centro comercial. Ali estava outro coyote que seria quem pagaria o dinheiro do resgate e me poria com um terceiro coyote, de outra organização, que me levaria do Arizona para Illinois.

No total, da Guatemala até Illinois, passei por seis coyotes de cinco organizações distintas. A primeira que me recebeu no aeroporto da Cidade do México era mulher e com ela viajei de avião até Hermosillo, em Sonora, e em táxi até Água Prieta, onde me entregou a outro coyote e regressou para a capital mexicana.

No centro comercial se aproximou o coyote que é ex marido dessa primeira coyota. Ele trabalhava em uma organização diferente da dela. Me perguntou como ela estava e eu disse que bem. Ele entregou o dinheiro ao condutor e assim eu saí do veículo. Os motoristas tomaram caminhos diferentes.

Me levou para almoçar e comprar uma muda de roupa que a que eu usava parecia um trapo. Me comprou um hambúrguer pelo drive thru e entramos o mais rápido possível no centro comercial em busca da muda de roupa sem nos atermos a muitos detalhes. Saímos de lá e fomos a sua casa, que era um trailer em um bairro todo de trailers. Ali encontrei outro grupo de migrantes que trancados esperavam transporte a diferentes estados onde familiares os esperavam. O trabalho desse coyote é negociar com as organizações que nos cruzam a fronteira e ele se encarrega por conta própria de nos deixar nos distintos estados, nessa viagem me explicou que meu caminho era fora de mão, que a maioria das entregas são para o lado oposto do meu e que por essa razão contatou outro coyote que já levava gente mas conseguiu um espaço no seu veículo para mim. “Você vai numa Caravan”, me disse.

Os que estão dentro da casa ficam acorrentados nas mãos e pés. O coyote diz que é para que não saiam por aí e sejam pegos pela La Migra, ou seja, tenta convencer que estão acorrentados para o próprio bem pois as pessoas chegam assustadas e podem fazer besteira.

Esperei em sua casa até umas cinco da tarde quando chegou o outro coyote com sua Caravan que para minha surpresa não era um modelo recente como o automóvel anterior, nem como os carros dos coyotes da casa onde eu estive em Phoenix. Esse coyote tinha sua casa no povoado de Douglas, que se avizinha justamente de Água Prieta, e me explicou que tem de ser um carro com essa aparência e modelo porque iremos em caminhos tortuosos e esse tipo de veículo é o que transita bem por lá.

Me despeço dele com um refrigerante no estomago junto do hambúrguer, vestindo a muda de roupa nova e com a velha guardada em uma sacola de nylon. O coyote abriu a porta da sua Caravan e lá dentro tem uma fila de homens no chão com o rosto virado pra cima. A camionete tem apenas dois acentos na parte da frente, os outros foram quitados para que caibam mais migrantes, e atrás puseram uma cadeirona solta para que eu me sentasse, já que era a única mulher entre os indocumentados. O coyote foi acompanhado de sua esposa e filha, de poucos meses de idade.

Percorre o caminho com o rádio a todo volume. Atrás leva quatro buzinas parecidas as de igreja evangélica em culto de fim de semana, a música de banda duranguense é sua favorita e nos toca aguentar as buzinas ronronando justamente nos nossos tímpanos.

Conto 19 homens e comigo fazemos 20 indocumentados. Adiante vai o coyote de aproximadamente 40 anos de idade e sua esposa que disse ter 16, além da filha de quatro meses. Ambos são mexicanos e orgulhosos de ter uma filha estadunidense. Para nossa surpresa o coyote nos disse que nem ele e nem a esposa tinham documentos. Levavam um mapa do tamanho de uma cartolina que sua esposa ia lendo porque ele não entende inglês, nem sequer fala, escreve ou lê.

A viagem dura três dias nos quais cruzamos os estados do Novo México, Colorado, Kansas, Nebraska, Iowa, Wisconsin e finalmente chegamos a Illinois.

Três dias sem comer nem beber nada porque o coyote disse que se comêssemos teríamos que ir ao banheiro e isso era arriscado demais. Ele e sua esposa, e por suposto sua filha, faziam os três tempos, paravam em áreas de descanso e voltavam com comida que devoravam com a Caravan já novamente em movimento.

Efetivamente como havia dito, ele conduziu por caminhos afastados das estradas principais e autopistas, entre pequenos povoados e campos onde abundavam os ranchos e fazendas, nunca se separou do trem cargueiro que atravessava os campos de soja, milho e feijão. Grandes fazendas cheias de gado, enormes graneiros pintados de corinto. Montamos turnos com os companheiros migrantes e cada um podia ficar uma hora sentado na minha cadeira. Foram vinte horas alternando-nos e depois voltamos a revezar mais vezes. Quando tocava o chão nos empernávamos todos, porque o frio era insuportável e ninguém tinha abrigo. Não podíamos dormir tampouco, porque o som estava a todo volume. No segundo dia os homens pediram para urinar e ele não permitiu, o que fez o coyote foi lhes dar latas vazias de refrigerantes para urinarem ali e que cada qual cuidasse da sua própria lata. A mim me havia alertado o coyote anterior, da casa de trailer, que não iriam parar o caminho inteiro e que fosse ao banheiro antes de partir.

Todos iam para Atlanta, no estado de Geórgia, a trabalhar nos campos de cultivo da região. O mais jovem do grupo tinha 23 anos – minha idade – e o mais velho sessenta. Me doeu quando vi o senhor de sessenta anos, seus olhos azuis, loiro, seu olhar cansado, eu jurava que ele era chiquimulteco, falava com sotaque de Ipala, mas eu não quis importuná-lo pois se disse que era mexicano, aí tinha coisa.

Me disseram que era a primeira vez que emigravam, todos afirmaram serem mexicanos. Todos eram camponeses. O olhar de um homem camponês é tão deslumbrante por transparente, muito diferente do olhar de um homem urbano. O olhar de um camponês traz auroras e risos, malocas, campos e milho fresco. O olhar de um homem urbano é mais complexo, leva letras e números, títulos e etiquetas.

Entraram em confiança comigo e me disseram que sentiam como se houvessem crescido com eles em suas cidades, cada um começou a contar sua vida e querências, dores e vazios; todos iam buscar comida nos Estados Unidos. Cada um havia decidido deixar de ser, por exemplo, garçom em seus povoados natais para o serem nos EUA, mas ganhando muito mais dinheiro do que a miséria que pagavam os ricos de seu país.

Dormiriam em albergues e os salários dos primeiros seis meses estavam empenhados com o coyote que conduzia a camionete, essa quantidade lhes cobrou pela viagem do Arizona até Atlanta. Realmente eu também estava fora da rota, mas por amizade com o coyote do trailer que foi quem o ensinou o negocio de “entregar indocumentados”, fez o favor de me levar. Assim me disse no segundo dia de viagem quando transitávamos no Colorado. Também me disse que eu não tinha cara de mexicana de Morelos, talvez caribenha ou veracruzana.

Desde que fui recebida pela primeira coyota na Cidade do México o acordo foi que eu me fizesse de mexicana para evitar que me deportassem pra Guatemala caso eu fosse pega, pois partindo do México seria mais fácil tentar novamente cruzar a fronteira. Por essa razão aprendi a falar como mexicana de Veracruz e Guerrero, que o sotaque se parecia mais ao meu de guatemalteca, também estudei a geografia do país, algo de história e sobretudo os nomes dos governantes, informação que foi vital nas sete vezes que nos deteve a Polícia Federal em território mexicano. Se passei a prova com eles, com certeza não seria tão difícil se fosse parada pela Patrulha Fronteiriça em território estadunidense. Assim é que fui mexicana desde a capital daquele país até Illinois quando fui entregue, desta vez, nos braços da minha irmã.

No terceiro dia pediram novamente para urinar e o coyote não pôde negar pois também pediram comida e ele teve de parar para comprar umas bolsas de salgados e doces entregando uma a cada um junto de um refrigerante e nos disse que era a primeira e última vez que parava a viagem para que fossemos ao banheiro. Meteu-se num campo de um rancho ali próximo e nos deu dois minutos para urinar. Eu não comi as guloseimas nem provei o refrigerante, realmente tinha fome mas eles iam mais longe e a mim faltava poucas horas para chegar a Illinois, de algo aquilo lhes serviria no caminho.

Entrando em Iowa e vimos o deslumbrante rio Mississipi, não tínhamos autorização para levantar a cabeça para as janelas porque não estavam insulfilmadas e ver tal quantidade de gente podia levantar suspeitas. Qualquer um podia avisar a polícia ou pior ainda, a própria polícia podia ver e nos parar. Mas o rio era realmente maravilhoso e resultou impossível para o coyote dirigir e ao mesmo tempo evitar que o olhássemos.

Em Nebraska vi pela primeira vez a neve que caía sobre os montes de feno nos longínquos terrenos das fazendas onde também nos acompanhava o trem de carga que atravessava estados. Vi uma grande quantidade de manadas de veados caminhando livremente entre campos, reservas florestais e fazendas sem que ninguém os incomodasse.

A uma da manhã de onze de novembro de 2003 diante de um posto de gasolina no estado de Illinois foi realizada a minha entrega. Enquanto a Caravan se aproximava do posto, vi meu tio e sua esposa que não via desde que eu tinha 10 anos de idade. Juntos deles estava a minha irmã. Me esperavam do lado de fora da camionete e enquanto estacionava eu e os demais deste grupo nos demos um abraço coletivo, muito apertado para nos sentirmos. Ainda teriam um dia e meio de caminho até a Geórgia.

Aquela madrugada fria nevava, se anunciava o inverno estadunidense. Minha irmã correu para me abraçar e a me revistar por todos os lados para ver se estava inteira, chorávamos em uma mescla de alegria e angústia.

Saí desse deserto em pé de guerra com a vida e o processo de reconciliação durou anos, já não sou a mesma que saiu da Guatemala e jamais voltarei a ser porque fronteira rouba muito da gente. Vai secando a alma, pouco a pouco, a alegria se converte em veneno que consume todo o desejo de subsistência. Não há sonhos, nenhuma ilusão pela manhã; somos os migrantes clandestinos, os espectros de uma vida que já foi. E quem se atreve a negar isto é porque a fronteira também lhe roubou os parafusos.

Contudo o pouco que ficou em mim começou a reflorescer e é aí quando uma pessoa se dá conta que apenas com o instante de ver um botão se tornar flor, a vida vale a pena, e temos que lutar por ela.

A dez anos daquela travessia comprovei mais uma vez que é o que para você, será. Ainda que te quitem. E o que não é, não será, ainda que te dêem. Meu destino não era morrer naqueles desertos, nem tampouco ser árbitra internacional de futebol, era indubitavelmente me transformar em escritora fora do meu país de origem para contar suas histórias ao mundo, começando por esta. Que o mundo saiba o que é a fronteira entre o México e os Estados Unidos, que seja dada a voz aos milhares de indocumentados invisíveis. Essa é minha missão na vida e a encontrarei longe da amada terra que me viu nascer durante uma chuva torrencial do mês de agosto.

A vida realmente me preparou fisicamente na minha infância, crescendo com os meninos, indo a barrancos, subindo montanhas, trabalhando em fazendas de frutas, carregando isopores de sorvete por quilômetros debaixo de sol forte do meio dia, para que eu conhecesse a adversidade de perto e não tivesse medo. Não, não era para viajar pelo mundo inteiro visitando estádios e arbitrando jogos de futebol internacional que eu treinei durante anos com quatrocentos homens sendo a única mulher do grupo; ali eu estava forjando meu caráter e meu ímpeto indomáveis. Ali estava conhecendo o cansaço físico e mental que me serviria para cruzar as fronteiras da morte.

E não, eu não aprendi a ler e a escrever para me tornar maestra nem para ingressar na universidade, eu aprendi a ler e a escrever para relatar o que muitos vêem e fingem desconhecer, o que é real e traga vidas de milhares de pessoas. Aprendi a ler e a escrever para dar vida aos desaparecidos sem identidade que morreram na tentativa de conseguir fazer aquilo que eu fiz.

E estou aqui, indocumentada, trabalhando em mil bicos, sem o afã de qualquer glória, sem nenhum privilégio. Sou uma entre os milhões que vivem nas sombras da clandestinidade neste país que tem a insolência de auto proclamar-se “o mais rico do mundo”.

Não faço idéia do que possa ter me preparado o azar, não sei se morrerei longe do meu país, se regressarei com meus próprios pés ou se em um dia não tão distante meu retorno seja por deportação. Que seja assim! Voltarei como sempre vivi: com a cabeça erguida porque nunca roubei ninguém. Do que tenho certeza, é que sou uma chilipuca que nasceu com sorte.

Glossário

Coyote – pessoa que em troca de dinheiro auxilia os migrantes a cruzarem a fronteira.

La Migra – gíria dada a policiais, patrulha fronteiriça e toda força estatal ou paraestatal que persegue migrantes durante a travessia.

Duranguense – pessoa natural de Durango, no México.

Chiquimulteco – pessoal natural do departamento de Chiquimula, na Guatemala.

Ipala – cidade do departamento de Chiquimula, na Guatemala.

Veracruzana – natural do estado de Veracruz, no México.

Chilipuca – tipo de feijão preto três vezes maior que o consumido no Brasil. Comum na Guatemala.

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